Tínhamos os adeptos do Senna e os que torciam pelo Prost. Hoje temos quem apoie o Hamilton e quem o faça por Vettel. Os que preferiam – ou sempre preferiram – o último desportivo italiano, os que gostam mais dos alemães e quem mais quer os ingleses. Os tifosi da Ferrari e os que juram a pés juntos pela Porsche. Os adeptos da BMW e os da Mercedes. Os loucos pela McLaren e os doidos da Lamborghini. Os que sonham com um Bugatti e os que fantasiam com um Aston Martin... O mundo dos apaixonados por automóveis nunca foi consensual, mas ultimamente parece existir um tema sobre o qual todos parecem estar de acordo: a rejeição dos elétricos. Estes motores, afirmam, não têm alma. Falta-lhes as rotações a subir, as trocas de caixa, o som do motor. Por muito rápidos que possam ser, são desprovidos de emoção.
Provavelmente têm toda razão. Mas também provavelmente terão de adaptar-se, como todos nós, a uma realidade onde os carros a gasolina têm os dias contados. Talvez possamos dar uma ajuda ao contar que o elétrico, na realidade, esteve sempre presente no automóvel, desde a génese, e que o primeiro veículo digno desse nome movia-se a eletricidade, não a combustão….
Karl Benz é geralmente aceite como o pai do automóvel, com o seu Motorwagen apresentado em 1885 (e patenteado no ano seguinte). Mas uns anos antes, em 1881, um francês, Gustave Trouvé, apresentou na Exposição Internacional de Eletricidade, em Paris, um modelo em tudo semelhante ao de Benz, mas movido a eletricidade. Tratava-se de um protótipo funcional, embora pouco fiável, pelo que o resto da indústria seguiu o caminho da combustão – e para complicar, alguns desses primeiros motores a combustão não eram sequer movidos por um derivado de petróleo, mas a hidrogénio, o mesmo composto que é, hoje, tido por muitos como a melhor solução para alimentar toda a frota mundial.
Como se vê, o futuro do automóvel tem bastantes ligações com os seus primórdios, mais até do que pareceria possível. Já agora, e como estamos no tema, da próxima vez que alguém se exaltar com a "falta de jeito" de uma mulher ao volante, lembre-lhe que a primeira pessoa a fazer uma viagem de carro foi uma mulher, não um homem: em 1888, Bertha Benz levou a invenção do marido para a estrada para provar a sua utilidade.
Mas regressemos aos combustíveis e ao presente. Muitas marcas, como a BMW, a Mercedes, a Toyota, a Honda e a Hyundai, acreditam que o futuro passa, acima de tudo, pelas chamadas células de combustível, Fuel Cells, alimentadas a hidrogénio. Não serão as únicas, longe disso, mas estas cinco assinaram no Fórum em Davos, em 2017, um acordo com as principais companhias petrolíferas para a implementação de uma rede de distribuição de hidrogénio. Os frutos desse acordo chegaram a Portugal, onde a CaetanoBus, empresa do Grupo Salvador Caetano, se tornou a primeira companhia da Europa a produzir autocarros movidos a hidrogénio – com tecnologia Toyota que disponibiliza os sistemas de pilha de combustível e os tanques de hidrogénio. Prevê-se que os primeiros autocarros comecem a sair da fábrica de Gaia no final deste ano, colocando assim a empresa nacional na vanguarda da tecnologia.
A Galp revelou que vai instalar este ano os primeiros postos de abastecimento de hidrogénio no país – um em Lisboa e outro no Porto (ou melhor, em Vila Nova de Gaia, perto das instalações da CaetanoBus). À semelhança do que é possível verificar noutros países, estes postos podem ser facilmente montados numa bomba existente, a par com as estações de gasolina, diesel e mesmo elétricas. Dois postos não serão muito, mas mesmo o maior dos rios começa com fio de água, algures.
O que que se passa nas estradas?
Olhando para o panorama mundial, veem-se a circular muitos automóveis movidos exclusivamente a eletricidade, complementando uma oferta crescente de híbridos, mas veículos movidos a Fuel Cell não se encontram muitos. No nosso país não se encontra nenhum. Mesmo dentro daquelas cinco marcas que assinaram o protocolo, apenas três apresentaram modelos ao mercado: o Toyota Mirai, o Honda Clarity e o Hyundai Nexo, um claro indicador do atraso desta tecnologia relativamente ao elétrico, a outra solução ambientalmente eficiente. Assim, a oferta da BMW e da Mercedes, por exemplo, estende-se dos tradicionais diesel e gasolina aos híbridos plug in e 100 por cento elétricos. João Trincheiras, corporate communication manager da marca bávara, em Portugal, assume-o: "Há mais de 30 anos que o BMW Group se concentra no uso do hidrogénio enquanto fonte de energia. Já começámos a testar em condições reais, o que nos permite identificar falhas e oportunidades que nos aproximam do resultado final." Algo que deverá acontecer nos primeiros anos da próxima década. No entanto, explica aquele responsável, "o que verificamos é que o desenvolvimento desta tecnologia não está a acompanhar o ritmo do mercado, sobretudo devido às dificuldades associadas ao seu armazenamento e à rede de distribuição. Sabemos que irá ainda demorar algum tempo até que esteja desenvolvida ao ponto de poder ser utilizada de forma massiva". Por isso, a marca continua a apostar noutras energias mais sustentáveis, com destaque para a "tecnologia elétrica e híbrida plug in".
A Lexus, enquanto marca premium dentro do grupo Toyota, é outra que "acredita que a tecnologia a pilha de combustível terá um papel muito importante no futuro", refere Victor Marques, relações-públicas da marca em solo nacional. A Lexus apresentou inclusivamente o concept LF-FC, "em que a motorização era a pilha de combustível, como processo de intenções e de compromisso para com a tecnologia", mas enquanto não vê a luz do dia, a marca optou por apostar na tecnologia híbrida para baixar consumos e emissões. Mas, ao contrário do que é habitual, sem qualquer modelo exclusivamente elétrico (pelo menos para já), ou sequer híbrido plug in, ou seja, aqueles que podem ser carregados numa tomada exterior. Estes motores híbridos utilizam apenas a energia do veículo (travagens, desacelerações, etc.) para regenerarem as suas baterias porque, acrescenta Victor Marques, "neste momento é a solução que melhor vai de encontro às necessidades da maioria dos clientes que procura uma viatura de luxo". E adianta: "A nossa tecnologia não altera o estilo de vida atual dos clientes [mas consegue] uma redução significativa de consumos e emissões. Depois de vários estudos realizados concluímos que o cliente, em particular o cliente premium, acaba por não carregar a viatura, não beneficiando da tecnologia."
E todos os motores da marca nipónica (ou quase) são atualmente híbridos. Voltando ao protocolo assinado entre as cinco marcas e as principais distribuidoras petrolíferas, a sua razão de ser relaciona-se com a dificuldade de armazenamento e consequente distribuição do hidrogénio. Isto porque a atual infraestrutura de gasodutos e oleodutos não funciona com este elemento, implicando um investimento de muitos milhares de milhões de euros – apenas na Europa –, ou então a criação de uma tecnologia que transforme o hidrogénio em algo que possa ser enviado através da rede pré-existente. É o que se passa no CSIRO, um centro de investigação, na Austrália, que pretende transformar o hidrogénio em azoto, que pode passar de volta a hidrogénio, já na estação de carregamento. Seria a solução ideal para evitar que o custo deste combustível salte para preços proibitivos, pois esse tem sido um dos grandes argumentos em favor da eletricidade que fica, para já, bem mais em conta do que encher o depósito com qualquer outro combustível. Podemos estar a falar de poupanças de seis ou sete euros por 100 quilómetros, o que no final do ano representa uma diferença abissal.
Os elétricos são mesmo mais amigos do ambiente?
A pergunta parece descabida, mas e se a eletricidade consumida não for produzida por energias renováveis? O panorama não é animador. A maioria das fontes energéticas para a criação de eletricidade ainda são fósseis em todos os países da UE, com exceção da Suécia. No mundo, esse valor aproxima-se dos 23% do lado das fontes renováveis. Portugal está bem classificado, ocupando a quinta posição, com cerca de 40% da produção proveniente das renováveis, sendo 23% eólicas, 11% hidroelétricas, 5% biomassa e 1,6% fotovoltaicas, segundo a REN. Já os combustíveis fósseis dividem-se em gás natural com 34% e carvão com 26%. No caso do hidrogénio o panorama não é diferente, sendo o gás, um combustível fóssil, a fonte mais disseminada na produção do hidrogénio.
Ou seja, o nosso grande desafio será – não apenas nosso, mas de todo o mundo – mudar radicalmente o foco de produção à medida que consumimos cada vez mais eletricidade. Caso contrário estaremos a desperdiçar muitos milhares de milhões para não resolver problema algum e apenas afastá-lo das cidades.
O hidro é um génio?
Não há nada que bata, em tempo e conveniência, uma bomba de gasolina. Agora imaginem um automóvel que se carrega no mesmo tempo que hoje demoramos para encher o depósito, que apresenta a mesma autonomia de um qualquer motor a combustão, com a diferença de que, para a atmosfera, liberta apenas vapor de água. Água pura. Seria a resposta a muitas preces e assim se compreende a atração pelo hidrogénio.
Não é uma alucinação. Mesmo hoje, com a tecnologia pouco desenvolvida, é possível carregar em três minutos hidrogénio suficiente (160 litros) para percorrer aproximadamente 500 quilómetros. A primeira pilha de combustível foi apresentada em 1843, mas revelava as dificuldades de abastecimento e conservação que ainda hoje se sentem, pelo que foi mais ou menos abandonada até meados da década de 1960, altura em que a NASA a recuperou para impulsionar os foguetões do Programa Espacial Norte-Americano.
Apesar de ser perfeitamente possível usar hidrogénio num motor de combustão – vimos que nos primeiros tempos do automóvel propulsionou vários modelos –, a ideia, agora, é gerar energia elétrica para impulsionar o motor e isso faz-se introduzindo hidrogénio em estado líquido e oxigénio proveniente do ar, na pilha de combustível.
Apesar de bastante comum na Terra, o hidrogénio não existe por si e está sempre ligado a outro elemento, pelo que terá de ser extraído. Para tal podem usar-se vários métodos, uns mais verdes, como a eletrólise, utilizando fontes alternativas, e outros bastante menos, como a gaseificação, utilizando gás natural.