Um diálogo fictício, fruto da fértil imaginação do escriba
Nas instalações da marca em Zuffenhausen, a norte de Estugarda: "Herr Müller, Herr Müller! Os franceses fizeram-no! Proíbem-nos de usar o codename 901, dizem que as centenas com um zero no meio pertencem a eles!". Maquinalmente, sem retirar por um instante o olhar do que estava a fazer, Matthias Müller, Chairman of the Board da Dr. Ing. h.c. F. Porsche AG, responde: "Então a seguir ao zero vem o quê? O um? Pronto, fica 911".
Não aconteceu, mas podia perfeitamente ter acontecido, esta conversa nos inícios de 1963. "Os franceses" eram, evidentemente, a Peugeot. A 12 de setembro desse ano, abria portas o Salão de Frankfurt, um dos dois mais importantes salões automóveis do mundo, que alternava com Paris os anos ímpares e os pares. No stand da (ainda) pequena marca austro-alemã, um pedaço de História era revelado à imprensa mundial: uma silhueta familiar, a do VW, estendia-se agora em formato desportivo: o Porsche 911.
Uma receita que atravessa os tempos
Apresentado nesse longínquo 1963, só em 1964 o novo modelos chegaria aos stands. É extraordinário que ainda hoje, passadas oito gerações do modelo e outras tantas alterações ao desenho da carroçaria, a linha básica do primeiro 911 ainda se mantém. É um caso único na indústria automóvel. Só o Land Rover, o original que depois se viria a chamar Defender, se poderia gabar do mesmo, mas (infelizmente) já saiu há alguns anos das linhas de produção.
Num châssis-plataforma, tal como o "primo-irmão" Volkswagen, o 911 apresentava um motor boxer (de cilindros opostos, seis) colocado sobre o eixo traseiro. Tinha uma cilindrada de 2 litros e desenvolvia 130 cavalos. Ao longo dos anos e das várias gerações do 911, esses números viriam a subir astronomicamente, tanto nos cm3 como nos cavalos: 160, 210, 300, por aí acima, até aos atuais e espantosos 700 (sim, setecentos) cavalos do GT2 RS, com o seu motor 3800 cm3 biturbo.
Várias carroçarias, até mesmo um sedan
Com o passar dos anos e o sucesso de vendas acumulado pelo novo modelo – a que não é alheia, bem pelo contrário, a sua introdução no mercado dos EUA – o 911 foi recebendo outras carroçarias para acompanhar o coupé original. Logo em 1965, nascia o Targa: um estrito dois-lugares, de tejadilho amovível e com um grande arco de segurança por cima da cabeça dos ocupantes. Em finais de 1982, aparecia o 911 Cabriolet, o primeiro Porsche descapotável desde o 356 de 1954. E não se pode negar a influência do desenho do 911 no Panamera, um sedan de quatro portas que surgiu em 2009 – e que, embora baseado numa plataforma diferente, se apresentava como a extensão do famoso ‘coupé’ (apenas era mais longo, tinha duas portas a mais e tranportava mais três passageiros).
E depois do 911?
Eis uma pergunta que a Porsche não quer sequer ouvir formular. Já por mais do que uma vez esteve em cima da mesa o tema da descontinuação deste modelo. E a reação acabou por ser sempre a oposta: não pode terminar. Se isso acontecesse, seria uma machadada talvez fatal numa marca que se confunde com a sua própria criação.
[flashback para a década de 1980]
O mundo sofria os efeitos devastadores de uma recessão global e a marca alemã não era exceção: as vendas caíam a pique, e nem os EUA, já então o seu principal mercado escapavam à tendência recessiva. A Porsche definhava, estava moribunda, poderia morrer. É então que a Administração toma uma decisão histórica, cujos efeitos de longo prazo ainda hoje perduram: em vez de prosseguirem com o planeado encerramento da produção do 911, fizeram marcha-atrás e voltaram a investir na sobrevivência do seu modelo mais icónico. Sábia decisão, como o tempo viria a confirmar: sobreviveu o 911, e sobreviveu, porventura, a própria Porsche.
[fim do flashback, regresso à atualidade]
Apesar de já não ser o best-seller da Porsche, e de esta produzir uma gama constituída por ótimos modelos (o já referido Panamera, os SUV Cayenne e Macan, o 100% elétrico Taycan, uma maravilha tecnológica), a verdade é que o 911 – na perceção da Porsche enquanto marca – suplanta todos os seus descendentes. Por isso, Herr Oliver Blume, o atual CEO e Chairman of the Board, há-de fugir, como o diabo da cruz, de qualquer menção à reforma do 911.