Não é um filme fácil de ver, mas vale a pena vê-lo. Viagem ao Sol conta a história de um grupo de crianças austríacas que vieram para Portugal recuperar dos traumas da Segunda Guerra Mundial e de problemas de saúde causados pelo conflito. É um documentário, mas diferente do que possa imaginar. Não tem narrador e os relatos são feitos na primeira pessoa, por algumas dessas crianças, que hoje têm quase 90 anos. Mas não as vemos idosas, sentadas nos seus sofás, a responder a perguntas que não ouvimos. Vêmo-las pequenas, indefesas, perdidas, acanhadas, depois alegres e divertidas, entretidas com coisas de crianças, mais tarde, de novo perdidas e tristes. Para quem está a ver de fora, esta segunda vaga de tristeza é, talvez, pior que a primeira. No princípio, o choque da guerra não as deixava chorar, no fim, depois de passarem oito meses em Portugal, choraram muito porque não queriam voltar para uma Áustria fria, cinzenta, destruída e com a morte a viver em cada casa. Quem quereria?
Viagem ao Sol recupera fotografias e filmagens, oficiais e privadas, da década de 40 para levar o espectador ao passado. Primeiro, a uma Áustria destruída pela guerra, governada por pó e escombros. "A primeira vez que vi cor foi em Portugal. Aqui era tudo cinzento. Tudo cheio de pó. Não havia um jardim florido, um bosque, nada", recorda uma das crianças de então. Outra fala da sua experiência durante a guerra: "O nosso cão estava treinado para tomar conta de mim. Sentia-me sempre segura com ele. Quando tocavam as anti-aéreas, ele dava-me um empurrãozinho e íamos para a cave, e ele deitava-se em cima de mim para me proteger. Às vezes trazia um cobertor na boca e tapava-me." Outra ainda, conta o episódio específico que a trouxe para Portugal: o irmão, cinco anos mais velho, morreu atropelado por um camião, e ela diz que ainda hoje, quando passa por aquele local, consegue ver o sangue do irmão a escorrer para a sarjeta. O desgosto fez com que ficasse com uma infeção pulmunar de origem nervosa. Os médicos disseram que se não fosse para um país quente e húmido, morreria em menos de um ano.
Esta iniciativa da Cáritas, uma organização católica, trouxe para Portugal 3800 crianças para passarem oito meses ao sol, longe da sombra da guerra. Numa conversa por email, os realizadores, Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, explicam como descobriram este episódio histórico, praticamente desconhecido: "A origem do nosso filme Viagem ao Sol tem a ver com uma investigação que eu [Ansgar] fiz há alguns anos sobre os refugiados judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. […] Muitos deles referiram que durante a guerra tinha havido muitas crianças provenientes da Áustria [a virem para Portugal]. Uma vez que a Áustria nessa altura fazia parte do Terceiro Reich e que a política portuguesa era extremamente restritiva em relação à vinda de refugiados, ou seja, não eram autorizados transportes de crianças judias para Portugal, esta informação não fazia muito sentido. Só mais tarde percebi que, de facto, houve transportes coletivos de crianças da Áustria, só que estes não ocorreram durante, mas sim depois da guerra e as crianças não eram judias, mas católicas."
Para fazerem o filme, os realizadores contaram com a ajuda da embaixada da Aústria em Portugal e entrevistaram mais de 50 destas antigas crianças. "Foi um trabalho muito intenso, viajámos por vários sítios: Viena, Graz, Linz, Steyerl, mas também em Portugal: Lisboa, Braga, Coimbra", contam.
A parte mais complexa do trabalho, porém, não foi encontrar as pessoas, mas as imagens. As antigas crianças tinham um enorme acervo fotográfico, mas os materiais filmados foram mais difíceis de obter. Conseguiram encontrar as filmagens da chegada das crianças no Arquivo de Imagens em Movimento, aqui em Portugal, mas as imagens da guerra e do pós-guerra na Áustria, tiveram de ser procuradas no estrangeiro. Ao todo, levaram cerca de quatro anos a recolher o material.
De volta à história, algumas crianças ficaram traumatizadas com a chegada a Portugal. Nada estava decidido sobre as famílias que iriam acolhê-las, pelo que à sua chegada, no porto de Lisboa, gerou-se uma espécie de mercado, com as crianças a serem escolhidas "como se fossem gado", em função da cor e tamanho dos cabelos, tom de pele e cor dos olhos. E as meninas foram escolhidas com muito mais rapidez que os meninos.
Chegadas às suas novas casas, foram quase todas bem tratadas. Algumas, acolhidas por famílias abastadas – dessas, umas foram tratadas como filhas e viveram com luxos que nunca voltariam a ter; outras viviam com os criados e só apareciam quando os senhores ricos queriam fazer boa figura perante os amigos, mas recebiam amor e atenção dos criados, ainda que menos luxos. Outras ficaram em casas de pessoas simples, como costureiras, onde também não lhes faltou nada. No grupo entrevistado para o filme, apenas uma pessoa se queixou de ser maltratada: um rapazinho que ficou ao cuidado de um padre numa casa paroquial de onde não teve autorização para sair durante todo o tempo que esteve em Portugal. Pouco comeu e pouco falaram com ele. Porquê? O padre achou que ele era alemão e culpou-o pelo Holocausto. Felizmente, a casa paroquial tinha um bonito jardim, seu único consolo durante aqueles meses.
Com excepção deste rapazinho, que, ao chegar ao porto de Lisboa, constatou que era o único feliz por voltar a casa, o regresso foi difícil para todos e teve a sua dose de tragédia, como no caso de uma costureira que se havia afeiçoado a uma criança de tal forma que quis adoptá-la. Quando a mãe da menina o proibiu, a senhora suicidou-se. A guerra, qualquer guerra e em qualquer tempo, colhe vítimas inusitadas, algumas muito longe dos campos de batalha.
Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias dão nota disso mesmo: "Quando fazemos um filme partindo de episódios do passado, a nossa ideia é sempre ver que ressonâncias têm no presente e o que nos dizem acerca da nossa atualidade. Pouco depois de termos acabado o filme, começou a guerra na Ucrânia, o que tragicamente revelou a força do tema. Aliás, começou a dar-se outra atenção às crianças em situação de guerra e agora ainda mais com a guerra Israel-Palestina.
Questionados, em jeito de conclusão, sobre que mensagem gostariam que as pessoas guardassem na memória, depois de verem o filme, os realizadores respondem da seguinte forma: "Há vários aspetos que gostávamos que ficassem a ressoar nas pessoas, um deles, que foi também um dos que nos motivou a fazer o filme, é o de que não devemos olhar para as pessoas que vêm de fora, deslocadas do seu próprio país, como alguém que nos vai privar de algo, mas sim como alguém que vai enriquecer a nossa vida."
Veja o filme no Cinema City Alvalade, todos os dias às 15 horas – durante um período limitado, claro – ou aproveite a sessão especial no Nimas, no próximo dia 30 de janeiro, às 18h30, com presença da realizadora Susana Sousa Dias para uma conversa.