Damien Hirst mostra-se muito alegre para um artista cuja última exposição foi descrita como "o naufrágio da sua carreira". Vagueando pelo seu museu, o Newport Street Gallery, em Vauxhall, no Sul de Londres, o homem famoso por fazer fortuna com tubarões conservados em formaldeído é tão colorido como os círculos dos seus spot paintings. Veste um casaco desportivo amarelo sobre uma camisola brilhante de caxemira vermelha e azul: é um visual hipster de grande impacto para um homem de 52 anos. Treasures from the Wreck of the Unbelievable, uma vasta exposição de 189 trabalhos distribuídos por duas das maiores galerias de Veneza, encerrou em finais de 2017. Com dez anos de preparação e um custo de cerca de 50 milhões de libras, do próprio bolso de Hirst, a exposição convidava coleccionadores a comprarem as mais caras fake news alguma vez exibidas. Dado que o termo ainda não tinha sido cunhado quando ele apareceu com o conceito, era verdadeiramente presciente. Essa capacidade de prever o futuro é, talvez, o seu superpoder. Muito antes de os investidores em capital de risco serem empurrados para a arte como bem a adquirir, Hirst brincava com as ligações entre arte e dinheiro. Era quase como provar a sua ruína.
Esses últimos trabalhos eram descritos como "derivados" de tesouros perdidos pertencentes a Cif Amotan II, um imaginário escravo liberto, do século ii, o qual coleccionou um espantoso conjunto de esculturas e relíquias religiosas que se perderam no mar, tendo sido "descobertas" na costa oriental africana, em 2008. Aos visitantes era pedido que ignorassem a sua descrença na origem dos mármores incrustados de corais, dos bronzes e das peças de ouro "tirados do mar" pela equipa de resgate de salvados de navios naufragados, de Hirst. A verdade é que Cif Amotan II é um anagrama de I am a fiction, uma piada que só ele ou pessoas próximas deveriam entender. Os preços variavam entre 150 mil libras e mais de três milhões. As críticas eram boas e más, tal como ele gostava. Uma desdenhava da exposição, considerando-a uma "insensatez espectacular e ufana" que devia ser inteiramente despejada "no fundo do mar". O crítico do nosso jornal [The Times], Waldemar Januszczak, por outro lado, estava muito entusiasmado, chamando-lhe "a exposição individual mais ambiciosa que algum artista jamais criou". Hirst preferia dividir, mais do que unir, os críticos: "Apenas fiz uma exposição que levou a que me insultassem e eu concordei, e senti-me terrivelmente [a exposição The Elusive Truth, em Nova Iorque, em 2005]. Penso que temos de ter uma posição forte para lidar com o ataque cerrado da ‘imprensa negativa’". Por certo, a sua fortuna de 270 milhões de libras ajuda… "Isso é muito?", pergunta, sorrindo. A exposição dos Treasures integrava uma espécie de arremedo de Damien Hirst, ao descrever CIF, o lendário escravo liberto, como "ufano por excesso de riqueza". Um remoque a si próprio? "Penso que sim", diz, remexendo nas correntes de ouro rosa à volta do seu pescoço. Não consigo deixar de apreciar as suas soqueiras de esmeraldas e diamantes. Hirst tira-as, de imediato, e deixa-me experimentá-las. Todo ele é amabilidade, espirituosidade e sagacidade.
Hirst diz que Treasures from the Wreck of the Unbelievable foi uma tentativa de enveredar por um "caminho diferente do sistema das galerias", nas quais, ao longo de mais de 20 anos, alimentou constantemente o boom do mercado de arte contemporânea, entre 1990 e 2000. "Quando eu era estudante, tinha a ideia de criar um artista que fosse como uma máquina. Por isso, criei as séries infindáveis de spot paintings, spin paintings [pintura giratória] e borboletas como uma forma de me tornar imortal. Faria sempre apenas estes quadros e nunca morreria." Pode ter sido uma ideia nobre, mas o produto do seu trabalho foi tendo cada vez mais detractores. Quando, em 2012, o seu galerista, Larry Gagosian, expôs apenas spot paintings nas suas 11 galerias, um crítico observou: "Odiamos esta merda. Toda a gente odeia esta merda. Estas pintas não reflectem nada sobre a forma como vivemos, vemos, ou pensamos, são apenas estranhos memes para os impossivelmente ricos." Hirst reconhece que aqueles trabalhos se transformaram em algo a que começou a sentir aversão: "Inseriam-se brilhantemente no mercado, mas depois criei este mercado, onde só se compravam e vendiam e sentia que não havia fruição da arte. Tratava-se de negociar quadros em vez de olhar para eles. Oferecia-os a amigos e eles vendiam-nos. As pessoas vendiam-nos para comprar carteiras de mão. Quando o mercado ficou um pouco tremido e já não se vendiam facilmente, as pessoas perguntavam-se: ‘Que vou fazer com o meu Hirst, agora?’ E eu pensava: ‘Que tal pendurá-lo na parede?’" O longo tempo de preparação de Treasures fez com que as galerias não o importunassem. "Pensei: ‘Desde que tenha um projecto que leva dez anos a elaborar, eles não se vão incomodar.’ Lembro-me de o explicar e perguntavam-me: ‘Mas quando é que o pode mostrar? Dez anos?! Tem alguma outra coisa?’ E deixavam-me em paz." Hirst diz que, "depois do leilão", precisava de tempo para recuperar. Em 2008, semanas antes de a crise económica mundial atingir o auge, um épico leilão, de dois dias, na Sotheby’s vendeu mais de 200 obras de Hirst, que abrangiam 20 anos da sua carreira e que renderam 111 milhões de libras. Intitulado Beautiful Inside My Head Forever, estabeleceu um recorde de um só artista em leilão. Um crítico garantiu que, em apenas 48 horas, Hirst ganhou mais dinheiro do que todos os artistas exibidos na National Gallery em toda a sua existência. "Naquele momento, não conseguia compreender o que se estava a passar. Quando me informavam sobre os valores por que as coisas eram vendidas, eu perguntava: ‘Tem a certeza de que é esse o valor?’ Não me conseguia concentrar. Pensava: ‘Se fiz mais dinheiro do que o Da Vinci, alguma coisa está errada. Senti a tentação de pensar que era um grande artista, que tudo o que fazia seria vendido por uma soma enorme e que era algo do outro mundo. Mas lembro-me de pensar, na altura, que alguma coisa estava errada. Os investidores em capital de risco gastaram muito dinheiro no leilão e, quando o mercado colapsou, pouco depois, percebi que era esse o verdadeiro mercado. Os artistas só querem pintar, apesar de eu realmente pensar noutras coisas." Será que se refere a dinheiro? "Penso que não se pode fazer arte sem considerar esse aspecto." Hirst, de facto, considera-o bastante. Através da sua empresa, Other Criteria, expandiu-se para o mercado mais barato produzindo infindáveis edições limitadas de reproduções impressas e livros de arte. Também tem restaurantes, joalharias e, até, colaborações com a Lalique. Terá vendido a sua alma artística? "Queria fazer arte a preços acessíveis", insiste. "Na inauguração de uma exposição, as pessoas chegavam ao pé de mim e diziam: ‘Tenho sete peças suas – reproduções de spot paintings, reproduções da caveira de diamantes, reproduções das borboletas.’ São exactamente as mesmas que as possuídas por grandes coleccionadores. Como artista, quero alcançar todo o espectro. Mas as coisas vão assim tão bem? No início de 2017 fechou as lojas Other Criteria, de Devon e de Nova Iorque, e várias das suas empresas no Reino Unido. Também ficou sem o seu gestor empresarial, James Kelly. Terá o navio de Hirst atingido águas turbulentas? Não, insiste. A Treasures está a vender bem. "Já vendemos o dobro do que o leilão rendeu", garante. O dobro? De acordo com Hirst, a Treasures já fez 250 milhões de libras em vendas. E acerca das mudanças na sua equipa? Diz que Kelly saiu por razões de saúde e, "assim que saiu, fechámos todas as empresas que estavam inactivas, vimo-nos livres de tudo de que não precisávamos. Fechámos as lojas Other Criteria, mas ainda estamos online. É uma pequena percentagem do negócio, mas ocupa uma grande parte dos meus empregados e do meu tempo. Gostaria de fazê-las voltar ao que outrora foram". E Toddington Manor, no Gloucestershire, a mansão em ruínas do século xix, com 300 quartos que comprou, em 2005, por três milhões de libras, com grandes planos para a renovar, com o patrocínio da English Heritage, uma organização pública de beneficência, e transformar num museu das suas obras pessoais e "casa de fim-de-semana"? Encontra-se actualmente cercada de andaimes e admite que, agora, a relegou para segundo plano. "Procuro dinheiro, neste momento. Tive essa ideia [Toddington] na altura do boom de vendas, quando havia muito dinheiro a circular. E, de repente, parei tudo por causa do Newport Street Gallery. Depois comprei a casa, em Londres, que estou a pensar renovar e que é bastante grande." Pagou 39,5 milhões de libras por esta casa, com vista para Regent’s Park. "Lembro-me de dizer a mim próprio: ‘Concluirei todos os meus projectos até fazer 50 anos.’ Agora, tenho 52 e penso: ‘Oh!’" Hirst diz-me que comprou um estúdio no Soho, no final de 2017, e também injectou 25 milhões de libras no museu Newport Street Gallery antes da sua abertura, em 2015. O museu, aberto ao público e de entrada livre, exibe peças da sua colecção Murderme, que engloba mais de três mil obras de artistas como Bansky, Picasso, Francis Bacon e Tracey Emin. O Newport Street Gallery alberga também o Pharmacy 2, uma versão remodelada do seu antigo restaurante, em Notting Hill, cenário do hedonismo alimentado a cocaína e a álcool que rodeava Hirst e a sua equipa, noutros tempos.
Nascido em Bristol e criado em Leeds, Hirst estudou no Goldsmiths College, em Londres. Quando era ainda estudante, foi curador da agora infame exposição Freeze, instalada num armazém abandonado, em Docklands, na qual mostrou o seu trabalho, juntamente com Sarah Lucas, Gary Hume e vários outros artistas. Ficaram conhecidos como os Young British Artists (YBA). Seguiram-se um Prémio Turner, em 1995, e duas décadas de interminável festejo. "Vinte anos a beber, em contínuo, souberam muito bem", ri-se, lembrando-se de uma noite, particularmente louca, com Keith Allen e Robbie Williams, no Groucho Club. Mas admite que, na maior parte do tempo, estava "fora de mim e era um completo idiota". Tentou abandonar aquele estilo de vida, em 2002, mas "tinha recaídas". Está sóbrio, desde 2006, e com a sobriedade vieram os remorsos devido à falta de dignidade do seu antigo alter ego embriagado. "Lembro-me de estar a falar com [o realizador] Rob Altman e a mulher dele, numa festa. As pessoas tomavam carradas de cocaína, provavelmente caía-me do nariz, e pensava que todos me amavam. Anos depois, estou sóbrio e penso: ‘Ah, não, mais um desses idiotas tagarelas.’" O que desencadeou a mudança? "Tinha deixado de ser engraçado e tornou-se um vício. Acordava de manhã e pensava: ‘Tenho de beber, sinto-me tão mal.’ Não era beber para celebrar, era para escapar. E também era pai e não estava a cumprir a minha obrigação." Hirst tem três filhos da sua ex-companheira, Maia Norman: Connor, de 22 anos, Cassius, de 17, e Cyrus, de 12. "Lembro-me de que uma vez pus o meu ‘pau’ de fora das calças, num bar em Dublin, e pensei: ‘Vou a tribunal por causa disto, mas não quero saber.’ Porém, Maia advertiu-me: ‘Não pensas nos teus filhos?’" Estamos a atravessar um período de denúncias contínuas de assédio sexual contra homens poderosos. Que pensa Hirst de tudo isto? "Os tempos mudam, por isso é difícil perceber o que é aceitável e o que não é. As leis são bastante claras, não são? Com menores, é mau. Sexo consensual entre dois adultos… não sei. O caso do Harvey Weinstein é apenas um facto triste da natureza humana. Quem está em posições de poder abusa de pessoas que perseguem os seus sonhos." Estando agora sóbrio, em retrospectiva, pensa que poderá ter pisado o risco alguma vez? "Espero que não", diz. "Quando se bebe, tem-se períodos de que não nos conseguimos lembrar, mas não fiz nada como isso. Um amigo disse-me que sexo, drogas e rock’n’roll é um mito, porque nos focamos num em detrimento dos outros. Eu bebia tanto que, de facto, seria impossível envolver-me noutra coisa qualquer." Há alguém na sua vida, actualmente? "Não quero falar disso", exclama, como quem bate com a porta. Relatos recentes indicam que se separou da escritora e produtora Katie Keight, de 27 anos, que conheceu numa festa de Weinstein, em 2014. Os estados de inconsciência provocados pela embriaguez são uma coisa do passado para Hirst que passa, agora, grande parte do tempo no ginásio. "Adoro yoga. Comecei há três anos e faço-a várias vezes por semana." Não tarda, vai acabar por começar a beber sumos de vegetais verdes. "Em relação a isso, não sei", diz, rindo. "Tentei uma dieta sem glúten, mas não funcionou. Também gosto de KFC [Kentucky Fried Chicken]."
Hirst tem claramente orgulho do seu papel de pai de três filhos, que vivem com ele em Richmond. Ele e Maia, que viveram juntos em Devon, antes de se separarem, há cinco anos, mantêm uma boa relação, apesar do facto de se saber que ficou "devastado" quando ela o deixou, após quase duas décadas, e iniciou uma relação com Tim Spicer, um antigo oficial do Exército Britânico. "Quando nos separámos, era eu que me encarregava desse lado familiar. A Maia deixou-me, deixou a casa da família e viajava e fazia a sua própria vida. O Connor estudava em Londres, por isso tomei a decisão: ‘Vou mudar-me para perto da escola.’" Cassius e Cyrus frequentam a Harrodian School, na zona Oeste de Londres, e Hirst diz que a mãe deles se mudou recentemente para estar perto dos filhos. "Estão com ela duas noites por semana. Eu disse-lhe: ‘Sempre que queiras estar com eles, arranja maneira de o fazer.’ Tenho uma ama e um professor para os ajudar com os trabalhos de casa." Não deve ser fácil para eles ter um nome tão conhecido como o do pai. Hirst diz que o seu filho Connor foi aceite na sua alma mater, a Goldsmiths, para estudar Cinema e Inglês, mas adiou a entrada. "É muito bom que ele tenha feito uma pausa porque estava a travar uma batalha interior. Ele pensava: ‘Não quero propriamente ir para a universidade em que o meu pai estudou.’" Há uns anos, Hirst ficou preocupado durante uma conversa com o seu filho mais novo. "O Cyrus chegou ao pé de mim e disse: ‘Pai, quando for mais velho, quero ser como tu, quero ser famoso.’ E lembro-me de pensar que era algo estranho – a fama é um resultado, não é um objectivo. Por isso, falei com ele sobre esse assunto." E ele percebeu a diferença, depois? "Penso que sim." Não fazer trabalhos de casa está fora de questão, mas podem ver televisão sempre que quiserem. "Encorajo-os, porque a minha mãe, quando eu andava na escola, nunca me deixava ver os The Sweeney [série inglesa com detectives, de 1975 a 1978]. Tenho uma televisão enorme e pressiono-os: ‘Joguem videojogos, vocês precisam de o fazer.’ É um truque, porque ficam aborrecidos. Se os deixar à vontade, acabam por se autocensurar." Ao falar dos filhos, pensa no Brexit e fica incomodado. Está "mais assustado com o Brexit" do que com o Presidente Trump. Firmemente a favor da permanência do Reino Unido na União Europeia, Hirst, que se afastou da arte política, porque "não quero que a arte se perca na confusão", abriu uma excepção para o referendo, produzindo posters de borboletas In. "Trata-se da liberdade e da flexibilidade de poder viajar [na Europa]", esclarece. "Sinto-me triste por os meus filhos não terem essa possibilidade e por limitarmos as nossas opções nesse âmbito. Não faz qualquer sentido. Mas não foi realmente uma opção do povo britânico, pois não? Escolher algo tão mesquinho. Muitos jovens não votaram." Contudo, o Brexit vai para a frente, e mesmo que [Jeremy] Corbyn vá para o poder e aumente os seus impostos, Hirst não fugirá para se refugiar numa das suas muitas casas de férias. "É preciso mais do que isso para me ir embora. Toda a gente gosta de se lamentar dos impostos, mas temos de os pagar, não temos? Gosto de ser britânico e adorei ser um artista britânico." Ainda assim, contrai-se perante o título de Young British Artist. "Odiei. Preferia ser um BBA – Bad British Artist." Porquê? "Na altura em que sabemos que o título é justificado, já temos idade para estar na reforma, mas ainda nos chamam YBA." Não gosta particularmente de ter abreviaturas à frente do seu nome. Deixa escapar que lhe foi oferecida uma medalha de mérito, mas recusou, sem pensar duas vezes. Julgava tratar-se da CBE (Commander of the Order of the British Empire). "Aconteceu há uns anos, mas penso que não foi tornado público. Não gosto muito dessas coisas. Cheguei onde cheguei por mim próprio. Uma abreviatura a seguir ao nome não é cool." Hirst já foi convidado para conhecer a rainha. "Nunca iria. É demasiado assustador, não lhe parece? Apesar de que gostaria de um reconhecimento real. O William e o Harry são bons rapazes. Deveríamos levá-los a comprar arte contemporânea." Talvez Hirst pudesse enviar um original seu como prenda do casamento real… "Quem se vai casar?", pergunta, 24 horas depois da avalanche de notícias sobre o noivado de Harry com Meghan Markle. É um abençoado ignorante. "Talvez envie esse", diz, apontando para um quadro com uma borboleta purpúrea na parede do seu restaurante. Hirst não quer sequer pensar em reformar-se em breve, mas tendo ultrapassado o meio século de existência, começa a reflectir sobre essa questão. Uma coisa que se abate sobre ele, olhando para trás e para a frente, é que menos é mais: "À medida que envelhecemos queremos que a vida se torne mais simples." Por agora.