No que respeita à compreensão da arte, não há no mundo ferramenta mais preciosa do que a inocência pura, igual à das crianças. Só ela permite o deslumbramento verdadeiro, o encantamento boquiaberto. Quando entrei no Kabuki, ao atravessar duas longas e vistosas tiras de tecido, pensei "que formidáveis são estas cortinas, que enigmáticos e vigorosos são os seus padrões minimalistas".
Estávamos ali para uma espécie de pré-vernissage. Mais tarde nesse dia, isto é, ao princípio da noite, seria inaugurada a mostra do artista polaco, agora radicado em Lisboa, Tomek Sadurski. O próprio artista explicaria, minutos depois de estarmos todos reunidos, que a obra dependurada no teto (aquilo que eu, na minha ignorância, presumi serem cortinas) logo ali no lobby do restaurante, pretendia não só assinalar o princípio da exposição, mas ainda obrigar o público a interagir com o trabalho - o trabalho em todas as suas dimensões: a ideia da obra, a textura do tecido, o impacto visual no indivíduo que a observa e com ela interage, o movimento inevitável do têxtil quando afastado pela mão de quem entra e que depois é libertado, à procura do regresso à posição natural.
A instalação da entrada era apenas o primeiro de um total de 13 trabalhos de Tomak Sadurski que o Kabuki vai manter em exposição até ao final de maio - "pelo menos", acrescenta Marta Flores Seabra, diretora de marketing do restaurante, que aproveita para deixar em aberto duas possibilidades, a de haver mais artistas expostos no futuro e a de a presente exposição se prolongar um pouco mais, enquanto contextualiza a ideia: "Queremos oferecer aos nossos clientes uma experiência multissensorial. Além da viagem gastronómica, da música e do ambiente acolhedor, convidamos a uma vivência visual estimulante e enriquecedora." E como é que o restaurante chegou a Sadurski? Marta conta que quando conheceu Tomek percebeu "imediatamente que seria uma combinação perfeita para o Kabuki Lisboa", pela inspiração minimalista e pela filosofia e pela estética japonesas.
O artista, por seu turno, aproveitará para falar mais detalhadamente sobre o seu trabalho em dois momentos. O primeiro acontece durante uma visita guiada pelo próprio, percorrendo os vários espaços do restaurante, onde o grupo ia parando diante das obras. "O meu trabalho resulta do encontro entre o flow e o ‘controlo e rendição’" ("control and surrender", em inglês, resulta muito melhor do que a versão traduzida). Tomek Sadurski, que também foi bailarino, explica que trabalha procurando a fluidez e a inspiração nas bandas sonoras instrumentais minimalistas, sons experimentais sem cadência, numa música assente apenas nas notas soltas que se cruzam pontualmente, como se vagueassem pelo universo. O seu trabalho acaba por refletir essa sensação de movimento no espaço. Tomek revela que as pinturas são executadas com escovas grandes que o próprio concebe e constrói. Essas escovas produzem um efeito altamente físico nas superfícies, quer sejam telas ou têxteis, ao ponto de, ao som da banda sonora do artista - uma banda sonora que há de nos acompanhar, e muitíssimo bem, até durante refeição -, conseguir imaginá-lo a pintar aquilo que ali temos diante de nós. O trabalho de Sadurski já foi exposto no Instituto de Arte Moderna de Valência ou na Fondation Antoine de Galbert Paris, por exemplo, ou ainda exibido numa performance de desenho ao vivo para a Paris Fashion Week, no Centre Pompidou.
Mais tarde, à mesa, durante um almoço descontraído em que o Kabuki aproveita para apresentar alguns dos seus pratos mais emblemáticos e que tão bem representam a ideia fundamental do restaurante - ser o "ponto de encontro entre o Japão e Mediterrâneo" -, Tomek Sadurski falará acerca do seu percurso, que passou por cidades como Munique, onde fez formação, mas também Nova Iorque e Los Angeles, onde expôs e trabalhou. Conta que em Los Angeles chegou a ter casa com estúdio montado, mas que a iminência dos confinamentos por causa da pandemia o levaram a procurar vir para a Europa, para não estar tão imensamente distante da família polaca. E foi precisamente essa fuga dos EUA para cá que o trouxe ao Porto, cidade onde viveu até há pouco tempo e de que fala com grande paixão e um conhecimento profundo.
Acerca dos trabalhos apresentados no Kabuki Lisboa, Marta Flores Seabra sublinha que são "uma combinação perfeita" com o restaurante, reforçando a presença da filosofia estética japonesa. Sadurski acrescenta que a inspiração japonesa "não é apropriativa, é intuitiva", e explica o seu apreço pela simplicidade de um traço singelo que divide um espaço branco, por exemplo. E assim ajuda a contextualizar não apenas as suas obras, mas também a disposição delas pelo espaço do restaurante: a maneira como, com simplicidade, acrescentam e dividem, sempre em sintonia com o microcosmos em que se inserem. As pinturas fazem parte de um conjunto de trabalhos de Sadurski intitulado According to Physics e de uma exposição anterior, Entropia. "Ler livros de Física foi a minha leitura de eleição durante o confinamento", explica. O resultado está à vista para quem visitar o Kabuki Lisboa.