1- O primeiro elemento da família de joalheiros Cartier de que se tem conhecimento é Louis-François Cartier (1755-1793/74?), um torneiro de Paris. Era o pai de Pierre Cartier (1787-1859), um jovem soldado de infantaria que foi feito prisioneiro, em Saragoça, durante as guerras napoleónicas. Escapou ao fuzilamento graças à mulher de um padeiro que o escondeu no forno de cozer o pão e o fez escapar, depois, disfarçado de mulher. Apesar do disfarce, os soldados de Wellington descobriram-no e enviaram-no, sob prisão, para Plymouth. Viveu alguns anos em Inglaterra, mas acabou por regressar a França, onde casou com Elisabeth Gérardin, recomeçando a vida como um modesto fabricante de bolsas para guardar a pólvora.
2- O apelido Cartier tornou-se um sinónimo de privilégio. Porém, é bastante comum, em França. Significa "aquele que fabrica e/ou vende cartas de jogo". Este apelido tornou-se famoso, no século XVI, quando Jacques-Cartier (1491-1557), um famoso navegador, chegou à Terra Nova e ao Canadá (cujas costas já haviam sido descobertas pelos portugueses) e os tomou em nome de Francisco I, rei de França. Mas seria um outro Cartier, Louis-François (1819-1904), a imortalizar o apelido ao fundar, em 1847, a mais prestigiada dinastia de joalheiros, em Paris.
3- Louis-Joseph (1875-1942) e Suzanne Cartier, netos do fundador da famosa casa de jóias, casaram com elementos do clã Worth, unindo, assim, a Alta Joalharia à Alta Costura. A família Worth notabilizou-se devido a Charles-Frederick Worth (1825-1895), o inglês que foi o precursor da Alta Costura e o homem que popularizou os desfiles de moda. Abriu, com sucesso, a sua Casa de Costura, em Paris, e é considerado como sendo o primeiro grande costureiro e o impulsionador da moda, em França. Foi ele que diversificou a joalharia da Cartier ao pedir aos respectivos joalheiros que criassem jóias sumptuosas para acompanhar cada um dos seus vestidos. O famoso quadro da imperatriz Elizabeth da Áustria (Sissi) mostra-a num esplendoroso vestido de Worth e com estrelas de diamantes no cabelo, criadas pela Cartier.
4- As mulheres pertencentes à realeza e à aristocracia europeia tiveram um papel preponderante na divulgação e ascensão da Casa Cartier. Foi uma delas, a princesa Mathilde (1820-1904), sobrinha de Napoleão Bonaparte e prima do imperador Napoleão III, que chamou a atenção da corte e da aristocracia francesas para a magnificência das jóias de Jean-François Cartier. Entre 1904 e 1939, Cartier tornou-se o fornecedor oficial de 15 cortes. Eram tantos os desvarios da elegância que a última rainha de Portugal, Dona Maria Amélia de Orleães, passeava o cão de estimação com uma coleira de diamantes criada por Cartier.
5- "Pertenço ao Rei", lia-se na coleira de prata que envolvia o pescoço de César, o cão que Eduardo VII ofereceu à norte-americana Mrs. Nancy Leeds, por intermédio de um amigo comum, Pierre-Camille Cartier. Deste modo, o monarca conseguiu que Cartier convencesse a milionária a mostrar as suas pérolas ao filho da Rainha Victoria, tanto mais que ambos pernoitavam no mesmo hotel, em Paris. O encontro foi motivado pelo interesse que Eduardo VII mantinha por uma pérola negra perfeita, vendida pela Casa Cartier, que Mrs. Leeds adquirira depois de aquele monarca ter hesitado na sua compra. Diz-se que o mulherengo Eduardo VII sucumbiu aos encantos de Mrs. Leeds que passou a ser visita assídua do Palácio de Buckingham.
6- As pérolas assumiram o estatuto de jóia de eleição no começo do século XX. Um colar com várias fileiras poderia atingir o valor de um Rembrandt! Em 1917, Pierre Camille Cartier conseguiu um prédio para ser o novo edifício-sede, em Nova Iorque, no número 653, da 5.ª Avenida, em troca de um colar de pérolas. O negócio só foi possível porque a tal Mrs. Leeds, a mulher do proprietário do imóvel, o banqueiro Morton E. Plant, queria desesperadamente ter o colar mais precioso da Cartier. O colar, com uma volta de 55 pérolas finas e outra de 73, levou anos a reunir por Pierre Cartier e estava avaliado em um milhão de dólares. O banqueiro aceitou, de bom grado, trocar o imóvel pelas pérolas, satisfazendo o capricho da mulher. Do colar mais nada se sabe, mas o edifício permanece na 5.ª Avenida, mantendo-se como a sede da Cartier, nos EUA.
7- A Cartier sempre foi um negócio de homens. Mas a influência de algumas mulheres nos destinos da Casa não passou despercebida. É o caso de Jeanne Toussaint (1887-1978) que, na Cartier, tinha o cognome de Pantera, devido ao seu comportamento autoritário. Mme. Toussaint era uma mulher competentíssima, dotada de um bom gosto inexcedível, e nada escapava ao seu olhar. Tornou-se a companheira de Louis-Joseph Cartier, a quem foi apresentada pela amiga comum de ambos, Coco Chanel. Separaram-se quando Cartier, que era viúvo, casou com a Condessa Jacqueline Almassy. Mme. Toussaint saiu, assim, da vida de Cartier, mas manteve-se ao serviço da Casa durante décadas. Curiosamente, a pantera tornou-se o símbolo da Cartier quando, em 1914, Louis-Joseph encomendou uma aguarela a George Barbier para ilustrar o convite para uma exposição de jóias. Barbier desenhou uma mulher, de pé, usando um vestido de Poiret e um longo sautoir de pérolas, tendo uma pantera a seus pés.
8- Além da pantera, outros elementos identificam a Casa Cartier ao longo do tempo. São tão profusos e belos que, aplicados às jóias, tornam difícil a sua escolha. Conta-se que, no passado, o rei do Sião, durante uma estada, em Paris, deslocou-se à Cartier. O intérprete que o acompanhava explicou que Sua Majestade desejava ver pulseiras. Foi-lhe mostrado um lote de verdadeiras preciosidades, exposto numa bandeja. Mas o rei estava descontente. Foi-lhe desvendada uma outra bandeja com pulseiras ainda mais raras e muito mais dispendiosas. A um aceno do monarca, o intérprete confirmou: "Sua Majestade escolheu aquela." Ao que o responsável pelas vendas, pensando tratar-se de uma só pulseira, perguntou: "Qual delas?" A resposta do intérprete foi inequívoca: "A bandeja da esquerda"…
9- Se a pantera simboliza a nobreza da Cartier, o pássaro representa a liberdade. Tanto assim é que a jóia L’Oiseau en Cage, representando um pássaro numa gaiola, foi exposta na vitrina da Cartier, na Rue de la Paix, em plena ocupação nazi, simbolizando a França aprisionada pelos alemães. Obviamente, Jeanne Toussaint foi convocada para uma reunião no quartel-general das tropas invasoras a fim de explicar o significado atribuído àquela preciosidade. Com mestria, Mme. Toussaint iludiu os alemães com palavras hábeis, embora eles não tivessem ficado convencidos. Depois da libertação, a montra da Cartier expôs uma jóia semelhante, mas com o pássaro voando em plena liberdade – L’Oiseau Liberé.
10- A liberdade também foi festejada pela Cartier após a I Guerra Mundial, ao lançar, em 1919, o relógio Tank, o qual possuía a forma dos tanques das forças aliadas. Criado por Pierre-Camille Cartier, com a colaboração do relojoeiro Edmond Jaeger, teve o seu protótipo desenvolvido no final da guerra, em 1918. Nesse ano, a Cartier ofereceu exemplares ao General Pershing e aos oficiais do corpo expedicionário norte-americano como forma de agradecimento.
11- Os relógios de pulso constituíram uma das grandes inovações da Cartier, substituindo os relógios de bolso, bastante ornamentados, fabricados em metais preciosos e suspensos por correntes (châtelaines). Por isso, foi com compreensível surpresa que os franceses receberam o Tank, um relógio extremamente sóbrio, em metal e com uma simples correia de couro. A Cartier soube aproveitar-se da época em que passou a ser exigida ao homem uma imagem de sobriedade, resultante da Revolução Industrial.
12- Um outro relógio, o Santos-Dumont, foi criado para o aviador brasileiro Alberto Santos-Dumont pelo seu amigo Louis-Joseph Cartier. Sabe-se que Santos-Dumont possuía um relógio de bolso da Cartier que o rei Leopoldo, da Bélgica, lhe havia oferecido, mas que lhe causava transtorno enquanto pilotava, pois precisava de ver as horas rapidamente, sem tirar as mãos dos comandos do avião ou do dirigível. Foi então que Louis-Joseph resolveu a situação, mostrando-lhe o relógio de pulso com correia. Este joalheiro acreditava que os relógios de pulso seriam facilmente adoptados pelos homens. De tal modo o foram que Rudolph Valentino exigiu manter o seu Tank bem apertado no pulso durante as filmagens de O Filho do Sheik, em 1926. E assim ficou marcado, de um modo original, o seu último papel no cinema.
13- O Cinema foi um filão para a Cartier. Não só as grandes estrelas se tornaram suas clientes como os realizadores lhes solicitavam jóias para adornar as actrizes dos seus filmes. Gloria Swanson usou, ao gosto dos anos de 1950, as suas fileiras de pulseiras em platina, quartzo e diamantes fabricadas por aqueles joalheiros, em O Crepúsculo dos Deuses, e Tallulah Bankhead atirou uma pulseira de diamantes ao "mar" para servir de isco para os peixes, no filme Um Barco e Nove Destinos, de 1944. Para o filme A Bela e o Monstro, de 1946, Jean Cocteau exigiu que as lágrimas da heroína da sua obra-prima cinematográfica, que, no conto, se transformam em diamantes, fossem verdadeiros diamantes que a Casa Cartier mandou lapidar, propositadamente, para esse fim. Para celebrar aquele filme, a Cartier lançou o anel Trinity La Belle, com os aros entrelaçados de ouro rosa, ouro amarelo e ouro branco que ainda hoje simbolizam o Amor e que são, desde 1924, uma jóia de eleição da prestigiada Maison Cartier.