Estilo / Moda

Vive le noir!

O preto é predominante onde quer que estejamos. Aclamamos, por isso, a cor de todas as cores que sobrevive desde o Neolítico.

04 de março de 2020 | Jorge Pimentel
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O preto foi imposto aos homens com a Revolução Industrial. A partir daí, adeus a essa coisa de querer rivalizar com as mulheres (a não ser nos anos 60…) nas perucas, nos empoados, nas rendas, nas jóias, nos saltos e etc. Se, antes, o poder se assumia com a posse de terras, com essa revolução o poder passou a atribuir-se à possessão de máquinas. Com o desenvolvimento da indústria e com as inevitáveis progressões da estrutura industrial, da banca, das finanças, dos negócios e do mundo empresarial, de um modo geral, um homem não podia sentar-se no topo da mesa da sala de um conselho de administração todo "engalanado". A imagem de seriedade tinha de ser garantida: não lhe bastava ser sério, tinha de parecê-lo. Isso perpassou para os funcionários, razão pela qual, ainda hoje, e de cima a baixo nas empresas do mundo financeiro, por exemplo, o fato escuro é uma regra.

Com a Revolução Industrial, a indumentária masculina tornou-se austera, rigorosa, despretensiosa e básica. Cartola, casaco comprido, peitilho e camisa brancos, gravata, colete, suspensórios, calças justas, luvas, botins ou sapatos abotinados, ambos apertados com botões, tanto mais que os atacadores e, especialmente, o fecho de correr surgiriam mais tarde. O fraque era exigido à noite, bem como o laço, o calçado polido, este a anteceder o verniz. O sobretudo, justo e com gola de pele, substituiu a capa que apenas era vista à noite. E o espartilho que adelgaçava a cintura masculina tanto ou mais do que a das senhoras mais elegantes. Um sofrimento que pretendia tornar mais sedutores os dignos representantes do sexo masculino, no período romântico. Ao homem elegante e aparentemente sério apenas lhe era permitido usar um alfinete de gravata, um anel discreto, botões de punho, um relógio de bolso (o trabalhado da caixa poderia ser o único exagero) e um leve toque de uma fragrância discreta. Ficava-se despojado de todos os excessos que eram permitidos no passado e, delirantemente, às mulheres. Assim, quando na rua o homem exibia a sua fortuna e poder que advinha disso através de uma esposa altiva com as suas vestes adornadas e longas, peles, jóias, rendas e chapéus largos e emplumados. Era a moda "por procuração". E o preto imperava no guarda-fato masculino de quem não pertencesse à classe trabalhadora, contentado com a cor castanha escura. Não faltou muito para que o pequeno-burguês tentasse imitar os mais abastados ou ricos, por vezes de modo ridículo. Mas o preto também invadiu as vestes femininas. Existe a ideia errónea que Gabrielle Chanel criou o preto para a noite, passando-o do luto para a festa. Antes dela, as mulheres enlutadas pela perda de familiares na Pneumónica ou Gripe Espanhola (1918-1919) e, antes, na I Grande Guerra (1914-1918), envergavam o preto de luto nas diferentes ocasiões, de dia ou de noite, ainda que solicitando às costureiras que criassem modelos sóbrios para honrar a dor. Chanel limitou-se a despojar ainda mais as vestes femininas de todo o ornamento e a difundir o preto que, de resto, a rainha Victória já oficializara com a adopção do eterno luto da viuvez, o preto victoriano. O seu uso manteve-se, mas perdeu influência nas décadas de 1960 e de 1970, com o uso de cores e de estampados (o homem retomou uma imagem mais efeminada, para os padrões que eram vigentes), ressurgindo nos anos 80 e, em força, na década seguinte através do minimalismo.

Hoje, o preto está tão ubíquo no nosso quotidiano que quase não damos conta dele. Da roupa para bebé a um smoking, de um frontispício a um toldo, de um botão a uma jóia, de um móvel a um carro, de um frasco de perfume a uma garrafa de vodka ou da morcela ao caviar, o preto domina. Há designers de moda que não o dispensam, como, a título de exemplo, Rei Kawakubo, Rick Owens ou Hedi Slimane, tal como usar essa cor em look total pode ser um sinal de rebeldia, de inconformismo, de intelectualidade, de "fashionismo" ou de elitismo. Face a isto, é difícil imaginar que o preto, que remonta ao homem das cavernas que adornaria o corpo pintando-o com as cinzas pretas da lenha queimada e que no Neolítico fazia parte dos rituais funerários com as pedras pretas e estatuetas muito escuras, perdeu o estatuto de cor nos finais da Idade Média, retomando-o, com mais visibilidade, nos começos do século XX (com irrupções em épocas anteriores), para o que muito contribuiu a fotografia e o cinema a preto e branco. O tributo surge, em 1946, quando a galeria Maeght, em Paris, declara, com insolência para a época: "O preto é uma cor."

"Eu trabalho em três cores de preto." Rei Kawakubo

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Na Antiguidade, no velho Egipto, na Roma Antiga e na Alta Idade Média (com o nascimento da Moda), o preto foi adoptado em profusão e nem sempre como sinal de luto. Se na Antiguidade significava temperança, moral e autoridade, na Alta Idade Média era a cor demoníaca (até nos animais, como o corvo e os cavalos selvagens), arrastada até à Inquisição que queimava nas fogueiras quem se atrevesse a usar tal cor. Depois do satânico e do mortuário serem afastados como cor negativa, a moda do preto é definitivamente lançada por volta de 1360-1380 e perdurará até meados do século XVII. Essa cor avança ou retrocede de acordo com o progresso ou recuo das mentalidades, mas no século XX serão os pintores, fotógrafos, cineastas, galeristas e, sobretudo, os costureiros que garantem a hegemonia do preto como cor da moda, renegando o preconceito relacionado com o funesto ou com o fúnebre.

Na actualidade, o preto ressalta na moda e na vontade de identificação com grupos, ideologias, estratos sociais e artísticos ou ideais políticos. Michel Pastoreau, um estudioso das cores, escreveu: "Hoje, o preto rebelde e transgressor atenuou-se muito, banalizou-se, até. Vestir-se de preto para proclamar a  revolta, a recusa das convenções sociais ou o ódio pelas autoridade não chega para dar nas vistas. (…) Isso já não desperta a curiosidade seja de quem for, nem sequer dos sociólogos. Vale mais a um jovem rebelde aparecer de fato domingueiro ou em traje de primeira comunhão: distinguir-se-á mais. O preto já nada tem de agressivo, nem de tabu. Temos, hoje, na gama dos pretos e das cores escuras, comportamentos que teriam horrorizado os nossos avós e bisavós: usar directamente sobre a pele um tecido preto, limpar-se a uma toalha preta, deitar-se em lençóis escuros e, até, vestir de negro ou de castanho crianças muito pequenas." Na verdade, nada disso teria sido possível há dez ou vinte anos, mas, nos dias de hoje, é tão trivial que nem damos por isso. O preto está tão banal que, para o elevar, as marcas de luxo criam etiquetas pretas para as suas gamas mais onerosas, a perfumaria embala nessa cor as essências mais dispendiosas e a banca cria cartões de crédito para quem tem mais de oito algarismos à esquerda da vírgula. É uma forma de distinção social. Em tudo o resto, o preto é uma cor de todos nós que vivemos em sociedades livres. Tornou-se uma cor democrática nas sociedades livres. Vive le noir!

"O preto não é triste. O que me deprime são as cores vivas. São tão… vazias. O preto é poético. Como é que se imagina um poeta? Num casaco amarelo vivo? Provavelmente, não." Ann Demeulemeester

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