"O preto é, simultaneamente, moderno e arrogante. É preguiçoso e fácil, ainda que misterioso. Mas, acima de tudo, o preto diz: ‘Eu não te incomodo — tu não me incomodas’". Transcrita esta citação do designer de moda japonês, Yohji Yamamoto, poderíamos, de forma altiva e pedante, ficar por aqui neste texto. É que o preto, antes de mais nada, é uma cor que não dá satisfações. É preto no branco, logo, sem espaço para litígios. Contudo — e apesar de tudo —, esta não cor (já lá vamos, à explicação) não tem tido uma existência fácil. Ao preto é comum serem associadas as piores características do livro das emoções: "o preto é deprimente", "o preto puxa para baixo", o "preto é sorumbático, soturno, lastimoso", ouve-se o tempo todo.
Em caso de dúvida, um rol de expressões e de termos confirmam a sua má fama: na Alemanha, por exemplo, quando alguém fica muito irritado diz-se que ficou "preto de raiva"; em inglês, a um crime de chantagem dá-se o nome de blackmail; piadas de mau gosto são, geralmente, conhecidas como sendo "piadas de humor negro"; quando uma pessoa é acometida por um blackout, fica tudo escuro e a pessoa não se lembra de nada; há as "ovelhas negras da família", aqueles que vivem sob uma "nuvem negra" e, naturalmente, os pessimistas que vêem "tudo negro". Relembramos ainda os "dias negros" da bolsa — como foi a sexta-feira negra de 24 de setembro de 1869, data que assinalou a falência do mercado de ouro nos Estados Unidos, — ou as listas negras — um lugar onde, independentemente dos motivos, ninguém quer figurar.
Num estudo publicado no livro A Psicologia das Cores: como as cores afetam a emoção e a razão (2017), o preto é a cor preferida de dez por cento das mulheres e homens. Entre os homens com idades compreendidas entre os 14 e os 25 anos, 20% citaram o preto como a cor predilecta; entre os de 26 e 49 anos, apenas 9%; acima dos 50 anos, ninguém citou o preto como a cor preferida. Nas mulheres, o gosto pelo preto também oscila com a idade: entre aquelas com idade superior a 50 anos, apenas 6% elege esta não cor como a favorita. Resumindo: quanto mais idade se tem, menos se aprecia o preto. O que pode parecer evidente se pensarmos no preto como a cor do luto — o preto, nos mais idosos, pode significar a morte. Posto isto, é até natural que a cor preta carregue consigo uma fama que não a favorece. Para começar, esta cor não é sequer uma cor. Vejamos: se a soma de todas as cores do arco-íris é branca, o preto representará a ausência de todas as cores. Deste modo, o preto foi declarado como sendo uma "não cor". A este propósito, Auguste Renoir, percursor do impressionismo foi, certa vez, questionado: "Quer dizer então que a única inovação do impressionismo foi a abolição do preto, essa ‘não cor’?". Ao que Renoir respondeu: "O preto uma ‘não cor’? De onde é que vocês tiraram isso? O preto é a rainha das cores. Eu sempre abominei o azul Prússia. Eu bem que tentei substituir o preto por uma mistura de vermelho e azul — mas, para isso, eu usei o azul cobalto ou o azul ultramarino; e, no final das contas, acabei por voltar para o preto marfim".
Em África, o preto é a mais bela das cores. Na bandeira preto-ouro-vermelho do Uganda, o preto representa o povo. O símbolo africano da liberdade é uma estrela preta de cinco pontas. O lema, por aquelas terras quentes, é Black is Beautiful. Porque é.
Back to Black (novamente)
A moda tem sido uma das maiores amantes do preto. Esta é uma relação amorosa que sobrevive aos tempos, e hoje, mais do que nunca, a não cor preta é sinónimo de resistência. De oposição ao boom do fast-fashion, das coleções demasiado constantes, e das tendências por demais fugazes. E, o mais engraçado, é que ninguém defende o preto de forma tão acérrima, como o fazem os grandes designers de moda. Afinal, quem dita as regras. " O preto é a quintessência da simplicidade e da elegância", clamou Gianni Versace. "O preto simboliza a ligação entre a arte e a moda", referiu Yves Saint-Laurent. "O preto é uma cor que cai bem em qualquer pessoa. Com o preto não há como errar", articulou Karl Lagerfeld. "Uso preto de dia e de noite. Fica sempre bem e dá destaque à personalidade", expôs Donna Karan. Mas a adoração a esta não cor surge bem lá atrás no tempo. Ainda antes de Coco Chanel (1883 - 1971) tornar chique o little black dress, em meados dos anos 20, o preto era uma cor reservada ao luto. Conta a lenda que Gabrielle Chanel começou a usar preto aquando a morte do seu amante, Boy Capel, em 1919, e que os seus primeiros pequenos vestidos pretos inspiravam-se nos simplórios trajes de luto preto usados pelas camponesas das aldeias francesas que Gabrielle conhecia em criança. Embora a criadora francesa tenha sido responsável por tornar esta peça no epítome do estilo, ela não foi a primeira a reconhecer o seu charme. Já em 1916, o termo little black dress surge na revista inglesa The Queen, e Henry James referiu o mesmo, ainda antes disso, em 1902, no filme As Asas do Amor. Explicava a antiga diretora da Vogue e da Harper’s Bazaar, Diana Vreeland (1903-1989), consultora especial do Costume Institute no Metropolitan Museum of Art, que "quando os restaurantes se tornaram moda para passeios noturnos, nos anos 20 e 30, o little black dress converteu-se no visual a adotar em público; isto, em oposição aos vestidos de festa usados ??em jantares privados. O que tornou esta peça (ainda mais) inteligente foram os airosos acessórios — as peles, as luvas, os apolíneos sapatos e, o mais importante de tudo, os pequenos chapéus ou véus ultra chiques com fitas de moiré usadas no cabelo. Eventualmente, o little black dress perderia esse brilho particular no momento em que as mulheres deixavam de decorar as suas cabeças com pequenos véus. A partir do protestantismo, com Martinho Lutero, a roupa preta propaga-se pela Europa assumindo-se como símbolo da responsabilidade individual, dando daí um grande salto até à mais moderna filosofia da individualidade: o existencialismo de Jean Paul Sartre. O existencialismo foi, por volta de 1950, uma moda e uma filosofia. A visão do mundo deixou-se reproduzir também na maneira de vestir — os existencialistas vestiam-se de preto. O filósofo Jean Paul Sartre sempre se vestiu de preto. A cantora Juliette Greco, que incorporou o existencialismo em atitudes mais populares, ficou famosa pelos seus olhos delineados a preto, pelas suas calças em veludo cotelê (ou bombazina) pretas e pela camisola de gola alta preta que lhe chegava até ao queixo.
Como cor que delimita, a roupa preta permaneceu popular entre todos os grupos que, ao longo da história, quisessem estar acima da norma, acima das massas, que não tivessem qualquer interesse em adaptar-se aos valores vigentes. Os beatniks — movimento sociocultural dos anos 50, princípio da década de 60, que subscreveu um estilo de vida anti-materialista, na sequência da 2.ª Guerra Mundial — só se vestiam de preto. "Beat style is anti-style" (O estilo beat é o anti-estilo) escreveu-se na revista Esquire, em março de 1993. "[O estilo beat] são camisolas de gola alta pretas (…) São as roupas que se deixa cair no chão do quarto quando se vai para a cama, já de madrugada, e que se vestem sem pensar duas vezes, já tarde ao acordar (…). O estilo beat é parecer que não se tem nada planeado, porém é tão simples que acaba por causar um grande impacto". De regresso às passerelles, torna-se impensável não referir certa designer japonesa. Estava-se em 1981 quando o trajecto da moda mudaria completamente. Rei Kawakubo faria a sua primeira aparição, em Paris, com a sua marca Comme Des Garçons. De cores escuras e repleta de buracos, as peças de roupa 'anti-moda' foram imediatamente repreendidas pela imprensa que as apelidou de 'Hiroshima chic' — tendo ajudado, porém, a reafirmar o preto como um carimbo que também pertencia ao guarda-roupa feminino. Evocamos, igualmente e evidentemente, um dos connaisseurs mais reconhecidos em matéria de preto. O príncipe do design sombrio, Rick Owens. Ladeado pela sua companheira, musa e ícone, Michèle Lamy, Owens lidera uma tribo de corvos vestidos de preto que transitam algures num espaço indeterminado entre o monasticismo, o gótico e o grunge. De farta e esvoaçante cabeleira negra e usando, geralmente, uma túnica preta sem mangas, o designer retrata a sua própria visão.
Em suma, resume-nos a história que quem se veste de preto não tem necessidade de se tornar interessante pelas cores que usa; que, para isso, basta a sua personalidade. A artista suíça Pipilotti Rist, que tematizou na sua pintura a transformação doself por meio de diferentes trajes, explanou: "Quem se veste com cores alegres passa uma impressão superficial. Quem se veste de preto está a demonstrar que não necessita de adornos, que tem valores internos". O realizador Sergei Einstein, por sua vez, repudiou a cor nos seus filmes pois acreditava que, "renunciando a atração através das cores, a forma e o conteúdo receberiam uma maior atenção pela parte do espectador". A forma segue a função (Form follows function). É esse o lema do desenho clássico-moderno. Significa a renúncia a enfeites, a padrões supérfluos, a cores supérfluas. Tudo ganha um colorido "neutro": preto, branco ou cinza. Com a renúncia ao colorido gera-se a exigência pela praticidade e pela funcionalidade — essas sim, as verdadeiras virtudes do design. Segundo o mesmo livro citado anteriormente A Psicologia das Cores: como as cores afetam a emoção e a razão (2017), "nos objetos de luxo, a renúncia às cores permite que o luxo se manifeste por si só. O preto é a cor com que mais se evidencia a renuncia ao colorido, a mais contundente renúncia à ostentação — e, por isso, o preto é a mais nobre das cores. Tudo o que quiser ganhar a aparência de ser tecnicamente moderno tornou-se preto: televisores, aparelhos de som, máquinas fotográficas ou relógios de pulso. As cores deveriam desaparecer para que a técnica passasse para primeiro plano". E se tudo isto nos parece demasiado técnico, frio até, então passemos a citar a designer belga, Ann Demeulemeester que declamou, tão poeticamente: "O preto é poético. Como é que imagina um poeta? Vestido de casaco amarelo brilhante? Provavelmente não". Exacto, provavelmente não.