Os movimentos feministas não são os únicos que estão a dar que falar. No passado mês de novembro, o bigode foi rei e, por causa disso, a saúde masculina ganha a merecida visibilidade. Como estão estes dois aspetos interligados? Através de uma Fundação convertida em movimento à escala mundial chamado Movember. Tudo começou em 2003, quando os amigos Travis Garone e Luke Slattery, reunidos num bar de Melbourne, na Austrália, congeminaram a ideia de tentar ressuscitar a ultrapassada moda do bigode, afastada há anos da moda convencionalmente aceite. Desafiaram amigos e conhecidos e conseguiram que 30 deles aceitassem o desafio, pelo qual pagavam a quantia de 10 dólares. O entusiasmo foi generalizado e, um ano depois, com a empresa registada e com o website operacional, elevaram-no a um movimento nacional. Inspirados pela mãe de um amigo que angariava fundos, na altura, para a luta contra o cancro da mama, focaram a campanha deles sobre a saúde masculina e, mais especificamente, sobre o cancro da próstata. Esta espécie de irmandade do bigode, à qual deram o nome de Mo Bros, cresceu e expandiu-se para outros países, chegando rapidamente aos quatro cantos do mundo. E o objetivo tornou-se ainda maior: impedir que os homens morram jovens demais, seja devido ao cancro da próstata, ao cancro testicular ou devido a questões de saúde mental, onde atuam através da prevenção do suicídio. Após 15 anos, o resultado revela-se no financiamento de 1.200 projetos de saúde sem envolvimentos governamentais.
Barbas, bigodes e ideologias
Colocando de lado o ativismo implícito em deixar crescer o bigode, não podemos retirar-lhe a devida importância ao longo dos séculos. Bernardo Coelho, sociólogo e investigador do CIEG/ISCSP-ULisboa, admite que as barbas e os bigodes não são características neutras: "Pelo contrário, transportam inúmeros significados sociais. A forma como as barbas e os bigodes se relacionam com o poder, com formas de afirmação política e ideológica, é apenas um desses sinais evidentes de significado social." Como exemplos, refere o processo histórico, político e social que levou à implantação da República, em Portugal, onde era evidente que o tipo de bigode e de barba permitia identificar os homens alinhados com a monarquia, com os republicanos ou com os anarquistas, entre outros. Da mesma forma, Bernardo Coelho explica: "São elementos fundamentais na construção identitária dos guerrilheiros da revolução cubana. As barbas e os bigodes de Che Guevara e de Fidel Castro não eram apenas consequência natural de serem homens, nem sequer eram um sinal de desleixo. As suas barbas e os seus bigodes tinham um significado político e ideológico. Afirmavam a contraposição ao poder da ditadura de [Fulgêncio] Baptista [Zaldívar] – e às suas caras lavadas e sem pilosidades." De tal modo que o seu significado ultrapassou a revolução cubana e os seus principais protagonistas.
A simbologia deste visual está, até hoje, intrinsecamente ligada ao imaginário revolucionário e à ideia de liberdade. Esclarece aquele sociólogo: "Do mesmo modo, o aparecimento em força das barbas e dos bigodes no pós-25 de Abril de 1974, em Portugal, tem o mesmo tipo de significado de demarcação política e ideológica. Ter bigode, barba e cabelo grande significava um posicionamento político e um alinhamento com os valores da Revolução de Abril e com a democracia." Bernardo Coelho abre um parêntesis para referir a transformação dos ideais de estética de muitos jogadores de futebol, nesta era, que em oposição à imagem polida que sempre havia sido estimulada é agora marcada de forma mais disruptiva pelo uso da barba e dos bigodes. Não parando por aqui, são igualmente símbolos da estética anarquista. O russo Mikhail Bakunin, fundador do anarquismo coletivista, o catalão Francisco Ferrer, o escritor britânico Alan Moore e até Mahatma Ghandi seguiram a estética associada a esta ideologia. Por outro lado, remata o investigador, "em contraponto às estéticas revolucionária, democrática e punk, a estética fascista foi, até há pouco tempo, marcada pela eliminação de todos os pelos das cabeças dos homens, por exemplo, os skinhead". Adverte para a alteração da estética que se tem vindo a verificar nos últimos anos. A barba e o bigode utilizam-se, hoje, das mais variadas formas e pelas mais diversas pessoas, muitas das quais não as associam a ideologias políticas. Devido à multiplicação de estéticas – dos lumbersexuals aos hipsters –, o grooming masculino tem-se desenvolvido rapidamente, sendo cada vez mais aceite e louvado em público, justificando a proliferação de barbearias. Sobre este tema, Bernardo Coelho deixa a questão no ar: "Serão meras barbearias ou locais de encontro e de difusão de ideias de uma estética fascista?"
Altos e baixos do século XX
No final do século XIX, com a descoberta da existência das bactérias – e a ligação dos germes às barbas e à falta de higiene que aportava –, as barbas ficaram oficialmente fora de moda, após décadas a reinar nos rostos masculinos. A Europa e a América do Norte implementaram novas regras sanitárias, o que incluía o barbear de todos os pacientes dos hospitais, independentemente de ser essa a vontade dos mesmos. Foram tempos gloriosos para o bigode e que duraram pouco devido à incompatibilidade dos pelos faciais com as máscaras antigás necessárias durante a I Guerra Mundial. Eram poucas as patentes de oficiais do exército autorizadas a usar bigode. Quando a guerra terminou, o bigode tornou-se o símbolo da liberdade do homem moderno. Foram os anos áureos de Hercule Poirot e dos seus famosos bigodes, dos sedutores de Hollywood, como Clark Gable, Errol Flynn e Ronald Colman, galãs que faziam as mulheres suspirar e os outros homens aspirar a ser como eles. A Grande Depressão de 1929 acabou com estes anos de ouro tanto para a sociedade como para o bigode. No livro de WC Graham sobre como arranjar trabalho durante essa época turbulenta, uma das recomendações era uma apresentação polida, livre de pelos faciais, associando-os a "gigolos ou a sheiks". A participação americana na II Guerra Mundial viu-os regressar com orgulho – com exceção do bigode escovinha usado por Hitler – como símbolo dos pilotos de guerra. Os anos 60 e 70 foram dominados pela barba – com exceção das estrelas de filmes pornográficos que utilizavam bigode, o que não acrescentava muito à reputação deste estilo –, mas nos anos 80 foi Tom Selleck e a sua icónica personagem Magnum PI, que ressuscitou a glória do início do século, a par de Burt Reynolds, o símbolo sexual americano por excelência. Considerados homens sexy e viris, também por imposição dos bigodes, foram imitados por muitos outros atores e homens comuns na tentativa de reproduzir a sensualidade de ambos. Mas entre os anos 90 e a viragem do milénio, com exceção de estrelas da pop/rock, o bigode caiu em desuso, para o que também contribuiu a Guerra do Golfo com a imagem de Saddam Hussein, o ditador inimigo árabe com bigode, tendo o Movember marcado o início do retorno deste símbolo de masculinidade, em 2003.
O símbolo do homem moderno
Se observarmos bem, facilmente constataremos que o bigode permanece em minoria nos espaços públicos do nosso país. Encontramo-lo em localidades rurais, em homens mais velhos e, excluindo o bigode-sombra (de quem não teve tempo de fazer a barba na última semana) e os raros hipsters, são poucos os espécimes adultos que exibem, orgulhosos e cuidados, os seus bigodes. Se recorrermos a inquéritos realizados recentemente nos Estados Unidos, perceberemos que a relação entre o bigode e a perceção dos outros é estreita. Há um notório preconceito em relação a este estado de grooming e uma grande percentagem dos americanos relaciona o bigode com pessoas que bebem demais, o que talvez justifique a associação aos bons vivants. Por outro lado, consideram-nos bons trabalhadores, apesar de haver menos registos de homens em posições de chefia com esta característica. Note-se que os líderes dos países mais avançados apresentam-se de rosto rapado, sendo o bigode mais comum em países sul-americanos, árabes e africanos. Independentemente disso, é inegável o ressurgimento de barbearias, onde o regresso do grooming é mais do que estimulado. O sociólogo Bernardo Coelho atribui este regresso a um quadro competitivo de definição das masculinidades, onde o cuidado com o corpo desempenha um papel central: "A forma como se apresenta e se revela quem cuida da barba e do bigode pode ser um indicador social importante. Em primeiro lugar, revela um determinado projeto estético per se. Em segundo lugar, porque apresentar uma barba e um bigode cuidados significa ter meios e recursos para isso. Isto é, o reaparecimento das barbas e dos bigodes funciona como um mecanismo de distinção social. Por um lado, estará associado a outros marcadores distintivos, como, por exemplo, o tipo de vestuário, as marcas de roupa, o culto das motorizadas vintage, etc. Ou seja, é uma opção estética que se enquadra numa visão mais alargada sobre a vida e que está fortemente condicionada com os recursos que se detêm. Por outro lado, a prática (o culto da barba e do bigode e a sua manutenção), em si mesmo, pode ser consideravelmente cara. Logo, mostrar este tipo de pelos na cara transforma-se num sinal exterior de sucesso económico e social. Um sinal distintivo."
Curiosidades cabeludas
Sobre o Movember
O movimento fundado em 2003, na Austrália, surge da junção das palavras moustache e november e partiu de uma organização não governamental que pretendia alertar os homens para a sua saúde e para a importância de realizarem consultas de rotina e análises com mais frequência do que aquela que se verificava na altura. O movimento cresceu, estendeu-se a vários países e hoje procura consciencializar as pessoas para o combate a doenças como o cancro da próstata, o cancro testicular, doenças mentais e a inatividade física. Este movimento mundial já angariou mais de 500 milhões de dólares. A Movember Foundation procura desmistificar o receio em torno dos exames de rastreio, alertando os homens para a importância de realizarem análises periódicas, consultas de rotina e a manter um estilo de vida saudável. www.movember.com