Qual o corpo de sonho masculino que manda a tendência? E terá sido sempre o mesmo nos últimos 50 anos? Em tempo de calor e praia, fomos descobrir.
15 de junho de 2020 | Carolina Carvalho
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Bobby Holland Hanton é inglês, foi ginasta e futebolista, e agora é duplo profissional de cinema. Antes de ser duplo de Channing Tattum, de Christian Bale, de Daniel Craig e de Chris Hemsworth foi duplo em publicidade de estrelas do futebol como Fernando Torres, David Beckham ou Steven Gerrard. Não é preciso um olhar especialmente atento nem medidas precisas para reconhecer que os referidos homens para quem Hanton já foi duplo têm corpos bem diferentes. Numa altura em que no cinema se privilegiam corpos musculados, o duplo garante que por ter sido ginasta a memória muscular permite-lhe aumentar facilmente o volume do corpo. Mas nem sempre o ideal masculino de beleza física foi assim e a elasticidade de Hanton serve-nos de pretexto para percorrer o último meio século e perceber o quanto este tema tem mudado de forma, literalmente.
No final do século XIX, a gordura era não só formosura, como também sinal de riqueza e as curvas do corpo sugeriam que as pessoas tinham possibilidade de se alimentar bem. No século XX, a ideia inverteu-se.
A década de 1930 foi o início da forte influência de Hollywood nos ideais de beleza e os cuidados dos atores que tinham de estar irrepreensíveis em frente às câmaras alertaram o público para cuidar do físico. Contudo, a década de 1960 teve uma tal explosão cultural e social que todas as ideias até aí definidas foram baralhadas e redistribuídas. Era nos fenómenos de contracultura que estava o fator cool e, por isso, os rockstars magríssimos e as cabeleiras longas tornaram-se moda. São ícones incontornáveis da época Mick Jagger, David Bowie e The Beatles, embora em estilos muito próprios. A fechar a década, em 1968, dois filmes protagonizados por Steve McQueen ficam na história do cinema e reforçam o estatuto de ícone de estilo do ator: The Thomas Crown Affair e Bullit. Mas a classe de McQueen a interpretar um milionário ou um polícia ao volante de um Mustang não chega para definir o look da década de 1970. Por outro lado, tanto o ator Burt Reynolds como o nadador olímpico americano Mark Spitz (que já colecionava medalhas antes de Michael Phelps) tinham contribuído para o início da tendência dos corpos tonificados que se viria a acentuar na década de 1980 (além da tendência do bigode farto, mas isso seria todo um outro artigo).
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Os agitados anos 80 reservaram a Gym Fever e como resultado disso surgiram os corpos musculados. Mas a tendência não ficou dentro dos ginásios e chegou ao cinema, onde encontramos, pelo menos, dois exemplos de peso (e de força). A carreira de Sylvester Stallone nessa década inclui filmes das sagas Rocky e Rambo e ainda o policial Cobra. A de Arnold Schwarzenegger conta com dois filmes de Conan e o primeiro Exterminador Implacável. Quando, em 2010, se reuniram para o primeiro filme da saga Os Mercenários uma coisa ambos provaram: o "mauzão" dos anos 80 que se preze mantém os músculos, mesmo que esteja prestes a completar 70 anos. Mas nem só de um look se faz uma década tão rica como a de 1980. O cinema também trouxe bons exemplos do homem forte, com um físico trabalhado e músculos que definem uma silhueta triangular, e romântico, quase como que em jeito de equilíbrio. Nomes como Tom Selleck (que entre 1980 e 1989 foi o protagonista da série Magnum PI e, em 1987, foi um dos Três Homens e um Bebé), Richard Gere (American Gigolo, em 1980, e Oficial e Cavalheiro, em 1982) ou um Brad Pitt em início de carreira continuam a ser referências de estilo masculinas. A década de 1990 anunciou o fim de um milénio e, novamente, o ideal de beleza masculino foi alterado. Depois de desenvolvidos todos os músculos possíveis e de levada ao extremo a masculinidade através do porte e da força, a imagem masculina começou a perder musculatura e a aproximar-se do homem comum e os cuidados com o corpo passaram da escultura para a textura com o bronzeado e a depilação a assumirem protagonismo.
Mas a mudança não foi assim tão rápida e simples. Tó Romano, cofundador da agência Central Models com Mi Romano, ajuda-nos a perceber. "Os ideais de beleza [masculina e feminina] eram ditados por ideais de beleza por vezes inatingíveis. Foi a altura das super top models internacionais e assistimos a uma grande mudança, no início do século XXI, que é ditada pela queda das Torres [Gémeas] de Nova Iorque. Essa situação é uma surpresa grande para o mundo e é o início de muitas crises e de receios internacionais. A partir daí, tanto a moda como a publicidade deixaram de utilizar o ideal de beleza inatingível para que as pessoas não se sentissem incomodadas com o não alcançar desses sonhos. Assistimos a grandes mudanças. Ou seja, havia que pôr os pés no chão. Na publicidade, começaram a ser utilizadas caras não ‘super’ bonitas, mas mais reais, com as quais nós nos identificássemos. É nessa altura que se vê o acentuar dos traços étnicos em termos de beleza no mundo inteiro. Deixa de haver top models e começa a haver uma abertura a looks diferentes. Um dos exemplos, e este foi uma surpresa muito grande, foi a aceitação das tatuagens." A moda e a publicidade estavam a ser, simultaneamente, agentes de mudança e reflexos da sociedade. As estrelas do cinema e da música ganham o estatuto de ícones de moda, assim como do desporto. Afinal, David Beckham, como Tó Romano afirma, "teve influência no movimento dos metrossexuais", mas já deixou os relvados há muitos anos e continua com este estatuto inabalável. Hoje, segundo os padrões de beleza masculina que ditam o corpo musculado, Cristiano Ronaldo é o futebolista que segura a tocha de ícone masculino no campo do futebol.
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Em Portugal, a Central Models abriu em 1989, como explica Tó Romano: "Nós tínhamos acabado de ter uma revolução no país que nos abriu portas e janelas para observar o que acontecia então na Europa e eu diria que foi muito abrupta a mudança a que assistimos em Portugal. Demorámos a reagir e eu diria que o ponto de arranque talvez tenha sido ditado por algum equilíbrio económico que chegou a Portugal pela ajuda do FMI, em 1982." E depois disso aconteceram mudanças. Em Portugal, no final da década de 1980 e no início de 1990, nomeadamente no campo da moda, surgiram as revistas femininas de qualidade e foi criado também o evento de moda nacional, a ModaLisboa. "Todos nós vivemos muito de mimetismo e logo o papel da comunicação social, na altura, foi bastante importante no sentido de sensibilizar consciências e estimular a mudança. Foi a época das ‘vítimas da moda’." Continuando em Portugal, Francisco Ibérico Nogueira, cirurgião plástico, diretor da Clínica Ibérico Nogueira, afirma que cerca de 80% dos seus pacientes são mulheres e apenas 20% são homens. Ao contrário do que se possa pensar, o que desmotiva os homens nesta área não é o medo do julgamento social, mas sim o medo da dor física, das agulhas e dos bisturis. Embora a cirurgia estética não tenha grandes novidades nas últimas décadas, aquele cirurgião plástico garante que os homens têm tirado proveito dos bons resultados da medicina estética aplicada nas mulheres e que recorrem, cada vez mais, a este tipo de tratamento, referindo quais as preferências dos pacientes da sua clínica. Quanto ao corpo, esclarece que "tem havido um crescendo de homens que apresentam uma condição que se chama ginecomastia, ou seja, o desenvolvimento anormal da glândula mamária". E prossegue: "Isso tem que ver com desequilíbrios hormonais ou com problemas alimentares e dá um aspeto que não é natural. É uma cirurgia pela qual temos sido muito contactados. Os ‘pneuzinhos’, isto é, a gordura que se acumula em torno do abdómen, incomodam muito os homens, especialmente na altura da praia e leva-os à cirurgia plástica. Curiosamente também, mas menos, há homens que não têm os músculos corporais suficientemente desenvolvidos e procuram-nos para introduzir umas próteses de silicone para simular os músculos de grande peitoral." No rosto acentua-se a procura da juventude. "Somos procurados, cada vez mais, por homens que querem aperfeiçoar certas dismorfias do nariz, ou seja, querem adequar um pouco o contorno nasal, talvez à moda atual, que é um nariz pequenino, bem definido e com ângulos. Também nos procuram para a remoção das chamadas bolsas palpebreiras que dão um ar envelhecido e cansado. Outro aspeto que se pode considerar um traço de beleza é o contorno mandibular e do pescoço. Uma linha mandibular bem definida, que nós chamamos a linha da juventude, dá um ar dinâmico e jovem ao rosto. Rejuvenesce o pescoço e a face."
Francisco Ibérico Nogueira refere que, hoje, cerca de 99% dos seus pacientes chegam até ele através "de pesquisas no Google e nas redes sociais e já surgem muito informados sobre tudo o que se passa à volta de um tratamento, de uma cirurgia ou do tempo de recuperação". É verdade que a tecnologia e as redes sociais têm um papel fundamental. Tó Romano começou por se referir ao desenvolvimento científico e tecnológico como um ponto importante em termos de mudança social e acrescenta que "até aí se vão buscar ídolos, cuja maneira de vestir e de estar acabam por ditar regras." Afirma: "Eu estou a recordar-me do Steve Jobs. Estava-se, neste caso, a acompanhar a liberdade do vestir, em simultâneo com a liberdade do viver." No entanto, conclui que "estamos a ultrapassar, agora, uma fase porventura marcada pelo sonho e pela vontade de atingir o impossível que é a fase dos super-heróis, ditada pelo absoluto avanço surpreendente da tecnologia." Quando a Disney comprou a Marvel por 4 mil milhões de dólares, em 2009, os super-heróis ficaram com superpoderes reforçados. Filmes, sequelas e prequelas sucedem-se e há personagens para todos os gostos. Como conclui a revista The Atlantic, os super-heróis do cinema já andam há 60 anos a refletir os ideais de físico masculino. Contudo, podemos acrescentar que, neste momento, eles estão também a lançar tendências, mais precisamente o culto do corpo esculpido por músculos. As histórias de super-heróis começaram a conquistar o cinema nas décadas de 1950 e de 1960. O Super-Homem sempre foi um favorito, mas os primeiros atores a vestir o fato desta personagem, Kirk Alyn e George Reeves, tinham um físico mais próprio de um Clarke Gable comum do que de um homem com uma força fora do normal. No final da década de 1970 e na década de 1980, os novos materiais têxteis sintéticos, como o spandex, o poliéster e a licra, saltaram do ginásio para os figurinos de cinema e obrigaram os atores a tratar melhor a sua forma física. Por isso, quando chegou a vez de Christopher Reeve usar a capa encarnada tudo começou a mudar. Embora os produtores quisessem que o ator usasse músculos falsos, este preferiu investir nos seus próprios músculos e tornou-se um ícone de físico masculino da época e talvez tenha começado a tendência que vemos hoje. Quando, em 2013, chegou a vez de Henry Cavill vestir o fato azul e vermelho do homem que nasceu em Krypton, a preparação para um porte atlético bem musculado já fazia parte da preparação dos filmes em Hollywood. Para tanto, personal trainers como Simon Waterson (responsável por preparar Daniel Graig para o papel de James Bond), Harley Pasternak (especialista em nutrição, celebridade da televisão e personal trainer de atores como Robert Pattinson e Robert Downey Jr.) ou Jason Walsh (que preparou Bradley Cooper para o filme American Sniper e John Krasinski para o filme 13 Hours) são essenciais. É impossível não referir Dwayne Johnson, que é o segundo ator mais bem pago do mundo (124 milhões de dólares anuais contra os 239 milhões de dólares de George Clooney, que está no topo da tabela elaborada pela Forbes americana) e influencer fitness no Instagram. Porém, o corpo musculado levado ao extremo também tem os seus contras. Por um lado, os super-heróis tornam-se figuras inatingíveis e o público pode perder a ligação às personagens, e, por outro lado, a forma física que só se consegue alcançar com uma preparação profissional é difícil de compreender por jovens e adultos.
Médicos pediatras alertam para um problema que resulta deste ideal difícil de alcançar, a vigorexia, ou seja, o transtorno psicológico em que o desejo de um corpo perfeito altera a perceção da própria imagem e os rapazes, entre 18 e 25 anos, são os principais afetados. A seguir o que virá? Tó Romano acredita que "a moda e a publicidade obrigam-nos a fazer um exercício que passa por percebermos aquilo que queremos para o nosso futuro e que terá a ver com preocupações sociais e ambientais. A seguir ao super-herói virá uma fase que será o Homo Deus, como no livro de Yuval Noah Harari [Homo Deus - História Breve do Amanhã, da editora Elsinore, 2017]. A aparência não é tão importante quanto deve ser o seu comportamento em termos sociais." O século XXI impõe uma mudança de mentalidades e a questão torna-se mais que pertinente: quem serão os super-heróis da próxima década?