Conversas

Vinil mania, confissões de um colecionador

Tem em casa mais de 15 mil vinis, arrumados por ordem alfabética. Mas Joaquim Paulo é muito mais do que o colecionador obstinado. Apaixonado por discos, aprendeu a fazer trabalho de detective, sempre na senda das raridades. E, como não lhe chegava descobrir pérolas do jazz para consumo próprio, criou a Mad About Records, uma editora especializada na reedição de discos raros.

Foto: Ricardo Lamego
03 de abril de 2020 | Rita Lúcio Martins
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Joaquim Paulo vive num daqueles bairros lisboetas que, mais do que nunca, parece um segredo. Bonito, tranquilo, quase sussurrado, como se por lá houvesse algo de mágico de que só alguns privilegiados terão conhecimento. É mais ou menos assim a sua casa, um primeiro andar à primeira vista tão discreto como, depois, bem recheado. Mal transpomos a porta de entrada, damos de caras com ela: A Colecção. São mais de 15 mil vinis, embalados em capas de plástico e arrumados por ordem alfabética, em prateleiras que se estendem do chão ao tecto, do passado distante ao mais recente. Em cada disco uma aventura, um novo capítulo na história deste homem que assume ter sido salvo pela música. O rapaz tímido que já era o típico nerd, ainda antes do termo cá chegar, deu lugar ao coleccionador obstinado que, por sua vez, foi cedendo espaço ao melómano apaixonado, o qual, hoje, também é homem de negócios astuto. Apresentador do programa de rádio Matéria-Prima, transmitido na Antena 3, e autor de dois livros dedicados ao lado gráfico da Música, editados pela Taschen, é o fundador de uma editora cuja missão é reeditar raridades, devolvendo ao mundo alguns dos mais belos discos que o tempo se encarregou de silenciar. Longa vida ao vinil.

 

Foto: D.R.



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Comprou o primeiro vinil quando tinha 15 anos. Já sabia que seria esse o início da sua colecção?

Nessa altura, vivia na minha casa um primo mais velho do que eu. Ele era oficial da Marinha, passava a vida a viajar pelo mundo inteiro e era fanático por música e por livros. Eu partilhava o quarto com ele. Tenho essa memória de ficarmos acordados até "às quinhentas", a ouvir programas de rádio. Era, até, algo bizarro porque ele já ouvia música muito complexa… Jazz rock, jazz de fusão, música experimental. Foi, sem dúvida, a minha grande influência. Depois, obviamente, explorei outras coisas: funk, soul, música do Brasil e música clássica também. Mas ele obrigou-me a começar pelo lado mais complexo. Mais tarde, mudou de país e eu fiquei com os discos dele.

Mas o seu primeiro disco foi comprado e não foi herdado. Lembra-se qual foi?

Claro! O meu pai é de Fafe e eu sempre passei grandes temporadas em casa do meu avô. O meu primeiro disco foi comprado em Fafe, numa loja minúscula onde eu passava as tardes a ouvir discos. O meu avô deu-me dinheiro e eu levei uma eternidade a decidir que disco haveria de comprar. Escolhi um dos Genesis, Selling England by the Pound. Já não me identifico muito com ele, mas guardo-o religiosamente.

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Li, recentemente, uma notícia onde se dava conta de um estudo que defendia que os 24 anos são a idade em que se está mais disponível para investigar novas sonoridades e que, a partir dos 30, deixamos de o fazer. Não será o seu caso...

Sempre ouvi música muito antiga, jazz antigo, música negra muito antiga. Por outro lado, trabalhei em rádio a vida toda e, durante muito tempo, era obrigado – por questões profissionais – a ouvir certas coisas que nunca ouviria em casa. Coisas comerciais que não me interessam. Tive sempre, isso sim, um lado arqueológico de querer ir à procura das raízes e sempre li muitas publicações para saber o que vai sendo editado. Mas o meu tempo é cada vez mais específico e dedicado a descobrir coisas que não são novidades.  

A música antiga é inequivocamente melhor?

Não necessariamente [hesita]. Como explicar? Há um crítico português, o José Duarte, que diz que o jazz morreu quando o John Coltrane morreu, o que é uma afirmação muito radical. Mas concordo que a Música foi mais aventureira nos anos de 1960 e de 1970, que é o período de que mais gosto. Tem a ver com o contexto social. Hoje, tudo é ouvido de uma forma tão descartável que não há tempo para uma ligação emocional. Tenho uma sobrinha de 17 anos, fanática por discos, e procuro fazer com ela o mesmo exercício que o meu primo fazia comigo: "Ah, gostas dos The Strokes?! Então vais ouvir o Iggy Pop de 1972."

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A isso se chama educação musical…

Sim. E hoje as pessoas não perdem muito tempo a educar-se. Partilham ficheiros, o que é uma coisa completamente abstracta. Por isso é que, por outro lado, as vendas de vinil dispararam nos últimos cinco anos, porque ainda há essa necessidade de ter uma relação física com o objecto.

Esse é um comportamento típico de uma determinada geração?   

Não. Além da editora que lancei recentemente, tenho um negócio de venda de discos online, uma plataforma, e muitas das pessoas que me compram discos, em todo o mundo, são miúdos, alguns muito novos. Às vezes troco alguns e-mails com eles porque se trata de discos manuseados e eles querem informações sobre o seu estado de conservação, e noto que são muito interessados. Fazem perguntas com alguma profundidade. Não é, portanto, algo que tenha a ver apenas com a minha geração. As pessoas da minha idade até poderão ter mais poder de compra, mas basta entrar nas lojas de discos para perceber quem é que está lá a comprar…

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Tornou-se mais fácil encontrar e comprar "aquele" vinil?

Sim, muito mais. Há plataformas mundiais ? como a Discogs que aloja milhares de lojas no mundo inteiro, inclusive a minha ? que fazem com que seja fácil comprar um disco raro ou até uma reedição. Mas, ainda assim, esse é um imediatismo diferente daquele de descarregar um ficheiro que depois vai parar a um disco externo.

Consumir música dessa forma é algo que vai contra os seus princípios?

[Ri-se] Uso o Spotify para "picar" coisas novas. Mas sempre que encontro alguma coisa de que gosto muito, compro o disco. Toda a minha vida foi assim. Ouço discos o dia inteiro!

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Foi por isso que acabou por fazer carreira na Rádio?

Comecei a trabalhar aos 17 anos naquela que, na altura, se chamava Rádio Porto e depois passou a ser a Rádio Comercial Norte. O convite surgiu porque eu já era conhecido como sendo um miúdo que tinha bastantes discos. Um dia, um vizinho que trabalhava nessa rádio falou com o meu pai no sentido de perceber se eu poderia lá ir. O meu pai disse-lhe que esquecesse essa ideia. Eu era muito tímido. Mas ele acabou por vir falar comigo e eu lá fui… Eles ficaram doidos! Na altura não era habitual alguém ter assim tantos discos. Eu comecei a aparecer, todos os sábados, para fazer um programa que durava cinco horas! Era a loucura total. Depois, comecei a trabalhar mais proximamente com o Álvaro Costa, escrevia-lhe textos, fazia pesquisa. Ainda criei uma rádio pirata com amigos e, mais tarde, fundei a Rádio Nova, hoje parte do grupo Sonae. Estive lá bastantes anos, até me mudar para Lisboa.

Hoje apresenta um programa na Antena 3, o Matéria-Prima...

... que era uma coisa que eu não fazia há, pelo menos, 20 anos. Eu não fazia antena. Eu era um homem de bastidores. Mas, há cerca de dois anos, convenceram-me e estou a adorar.

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É o espaço público da sua colecção…

Completamente. Deram-se ao trabalho de voltar a instalar um gira-discos no estúdio. Levo os meus discos e só passo o que eu quero. Estava há tanto tempo fora do estúdio que achei que poderia não correr bem. Mas não foi o caso. Assim que entrei, fez-se um "clique". Aquilo é um mundo à parte. Dá-me um gozo muito grande ir lá todas as semanas, estar ali fechado, a gravar, a ouvir as minhas coisas. É muito raro e difícil, hoje em dia, poder fazer-se isso, porque as rádios estão muito formatadas e condicionadas por estudos musicais e playlists. Fazer isto numa rádio pública que pode ser ouvida no mundo inteiro e com esta liberdade é um luxo total. Simultaneamente, deu-se um fenómeno maravilhoso: há muitos ouvintes que me contactam para saber mais sobre os discos. Também por isso, estou a criar um site para agrupar essa informação. E já aconteceu convidar os ouvintes para vir cá a casa ouvir música.

À medida que a colecção foi crescendo, não lhe foi roubando paz de espírito? Ou seja, nunca se tornou em algo obsessivo?

Um coleccionador é sempre alguém obsessivo. Claramente. Sou incapaz de fazer uma viagem sem me informar se o sítio para onde eu vou tem discos para comprar, nem que isso implique bater à porta de alguém. Faço sempre esse trabalho. Tudo se cruza. Mas, hoje, se eu não comprar, não fico deprimido. Houve uma altura em que isto já foi uma coisa mais... bem, não diria descontrolada, mas quando os discos eram mais difíceis de encontrar, quando não havia Internet, o desafio era bem maior. E quando se conseguia um disco, o prazer era gigantesco. Receber os catálogos das lojas, chegar a tempo de fazer o pedido e o disco ainda estar lá... Enfim, era um prazer muito grande.

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Como é que a colecção se foi desenhando?

Eu comecei por um lote de músicos, basicamente. Por exemplo, se num disco do Herbie Hancock tocasse um determinado músico, eu ia ver que outros discos ele tinha. Funciona como uma rede. As fichas técnicas dos discos, para mim, são tudo. Durante muito tempo comprei discos "às cegas", sem saber de que se tratava, mas bastava-me olhar para a ficha técnica e identificar dois ou três músicos para saber em que direcção eu estava a ir. Comprei muitos discos assim e alguns revelaram-se mesmo maravilhosos. Também se descobre muito conversando com pessoas. Quando a Internet apareceu passei a conversar com pessoas no mundo inteiro e, quando apareceu o Facebook, foi a revolução total. Chegar a um músico passou a ser a coisa mais fácil do mundo. E foi assim que surgiu a editora.

Qual é o posicionamento?

O meu objectivo é editar discos raros. Discos que a maior parte das pessoas não consegue comprar ou que, quando consegue, paga balúrdios por eles. Depois, havia o outro lado que me interessava: encontrar as pessoas, os músicos.

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É quase um trabalho de detective...

É, literalmente. Às vezes, trata-se de descobrir um músico que ainda está vivo e outras vezes [descobrir] algum familiar ou os músicos que tocaram com o músico principal. Ainda ontem consegui o contacto de uma pianista brasileira que gravou um único disco na vida e que eu julgava que já tinha falecido. Em conversa, ela disse-me que tinha mais gravações não incluídas no disco e que estava na posse dessas bobines originais. Disse-me que as poderia levar, para fazer a transcrição. Isso traz-me um prazer enorme.

O critério do portefólio da editora é então o mesmo da sua colecção: o seu gosto?

[Ri-se] Sim, a linha editorial é muito simples: são os discos de que eu gosto. Tenho oito títulos lançados. Obviamente, tenho de ter alguns cuidados. Eu não posso fazer escolhas radicais, de que só 20 pessoas irão gostar. Depois, só faço edições limitadas de 500 exemplares e são sempre edições de luxo: cartão muito grosso, vinil de grande qualidade, pormenores marcantes. E nunca caio na tentação de reeditar.

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Porque não?

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Porque quero que, daqui a uns tempos, a própria reedição seja um objecto coleccionável e isso já aconteceu com o primeiro disco que editei, do Victor Assis Brasil, um músico brasileiro que gravou apenas dois ou três discos na vida e que morreu muito novo. É o autor de Desenhos, um disco muito raro no Brasil e impossível de ser comprado por menos de 3 mil dólares. Encontrei o irmão, negociei os direitos, reeditei e, em menos de uma semana, esgotou.

Vendeu por quanto?

Vinte euros. É sempre esse o preço.

O Joaquim é uma espécie de justiceiro...

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... [hesita muito]

... trata-se de fazer justiça àquelas obras.

Ah, sim! Isso sim. Completamente. Quando falo com músicos brasileiros e africanos fico sempre muito impressionado por perceber que passaram as suas vidas profissionais a serem roubados pelas grandes editoras. Viviam dos concertos porque não recebiam quaisquer royalties. Não sabem o que isso é. Por isso, quando chego à beira de um músico ou da sua família e apresento um contrato eles ficam sempre surpreendidos.

E como é que surgiu a oportunidade de editar livros com a Taschen?

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Eu estudei arquitectura. A Arte interessa-me muito. Sempre achei que o jazz tem uma história gráfica maravilhosa que merece ser contada. Há capas de discos que são verdadeiras obras-primas de design ou de ilustração. Sempre vi os discos dessa forma e tinha esse projecto "há séculos". A Taschen sempre foi a minha referência. Um dia, estava a ler um jornal e vi uma entrevista do Pedro Lisboa, um português, na altura director financeiro da Taschen. Mandei-lhe e-mails para vários escritórios da Taschen no mundo e encontrei-o em Colónia. Ele encaminhou o assunto para o novo editor, o Julius Wiedemann, que me ligou a dizer que gostava muito de poder falar comigo. No dia seguinte, apanhou o avião e veio ter comigo a Lisboa. Assim surgiu o primeiro livro: Jazz Covers, editado em 2008. Três anos depois, saiu o Funk & Soul Covers que, entretanto, teve várias edições e actualizações. E há um terceiro, a editar em breve, dedicado ao período do [movimento musical] Tropicalismo, no Brasil, entre o final dos anos de 1960 e dos anos de 1970. Tive a oportunidade de entrevistar alguns dos designers e dos fotógrafos que intervieram, nessa época. Precisei, depois, da ajuda da Taschen. Editar, para mim, é o mais difícil.

 

Foto: D.R.



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Em algum momento sentiu necessidade de editar a sua colecção?

Não. Eu nunca vendi discos, mas ofereci alguns. Aprendi a desligar-me e a não levar a minha obsessão ao absurdo. Mas eu não empresto discos: ou os dou ou ouvem-nos aqui [em casa]. Agora, compro cada vez menos e também não compro a qualquer preço. Eu já não perco a cabeça, nem cometo loucuras.

O que é uma loucura, neste contexto?

Eu já comprei discos muito caros. Por mil euros... Mas o gozo maior é encontrar discos incríveis a preços baixos. Pechinchas. Recordo-me de chegar a Lisboa, há 18 anos, e de haver uma loja com discos incríveis. Eu nem queria acreditar… Durante esses primeiros três a quatro anos a viver em Lisboa, muito antes desta febre do vinil, andava por aí a vaguear na cidade e comprei discos raríssimos. Hoje, perco cada vez menos tempo nas lojas, mas ainda entro [nelas]. E já não respeito um dos meus princípios básicos: antes, frente a uma pilha de discos, tinha de os ver, do primeiro ao último. Agora, já não perco tempo. Vejo logo, aos primeiros, se a pesquisa vale a pena. Mas ainda se fazem grandes descobertas. O Brasil, por exemplo, ainda tem muito por explorar, apesar de já haver muita especulação nas grandes cidades. Quando fui a São Paulo pela primeira vez, em 1996, trouxe toneladas de discos, entre eles um, que já reeditei: chama-se Procura-se Uma Virgem, do maestro Érlon Chaves. Foi originalmente editado em 1972 e era a banda sonora de um filme pornográfico. É um disco que, hoje, é quase impossível de se encontrar e, quando isso acontece, é a um preço escandaloso. Paguei dez reais por ele e faço questão de manter a etiqueta com o preço na capa.

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É fã de música ao vivo?

Não. É raro ir a um concerto. Incomodam-me as multidões, o descontrolo das pessoas que, a meio, já não estão a ouvir a música. Isso irrita-me. Depois, na maior parte dos sítios, a qualidade do áudio é muito má. Também não consigo ir a festivais. E, mesmo no jazz, que é a música de que mais gosto, assisto a poucos concertos. E tenho uma regra que criei depois de algumas desilusões: nunca ver, ao vivo, músicos que são heróis para mim.

Os discos, a editora, os livros, a rádio, as pessoas. Foram todos grandes remédios para a sua confessada timidez...

Eu costumo dizer que me salvaram. E lembro-me sempre dos tempos do meu primo em que sempre que alguém comprava um disco, logo um grupo se reunia para o ouvir, gravar e levar para casa. A partilha é algo que valorizo muito. Por isso é que, às vezes, a minha casa parece uma pensão: chegam coleccionadores, compradores, estrangeiros e amigos… Ficam todos aqui.

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Artigo originalmente publicado na edição de julho de 2019 da MUST

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