Frequenta o mesmo café todas as noites. Cozinha o mesmo prato para a mãe. Tem respeito pelo mar, medo da repetição, e um apreço pela normalidade de Vila do Conde, cidade onde vive há muitos anos e de onde não planeia sair. Envolvido em vários projetos cinematográficos, o escritor Valter Hugo Mãe é o protagonista de um dos episódios da série Herdeiros de Saramago, que se estreou no festival Curtas Vila do Conde e que chega à RTP em novembro.
PUB
O meu fascínio pelo cinema vem desde sempre. Creio que para um criador, para alguém que trabalha na arte na contemporaneidade é quase impossível ficar indiferente ao cinema. Desde muito novo que me tornei sócio do cineclube aqui de Vila do Conde, que na verdade deu origem ao festival, os organizadores do cineclube acabaram por ser depois a cúpula da corporativa que deu origem ao festival. Tenho as minhas fixações, aprendi muito a ver cinema em cineclubes, no do Porto, no Octopus da Póvoa [de Varzim], por exemplo, que também já tem muitos anos. Quando começa o festival aqui em Vila do Conde era eu um estudante universitário. Foi de facto a altura perfeita. Para além de ter uma certa disponibilidade, não tinha ainda encargos profissionais, o festival ficava-me aqui a uma distancia percorrível a pé. Nos dois primeiros anos vi a integral do festival. O festival começava às duas da tarde, acabava às duas da manhã, e eu via essas 12 horas. Os sócios do cineclube tinham entrada gratuita e eu via em peso. Aliás, comprava o catálogo e anotava nos catálogos as pontuações e pequenas notas críticas aos filmes, aqueles de que gostava muito, outros de que gostava menos.
Alguma vez pensou em escrever crítica de cinema?
Às vezes escrevia um certo apontamento ou uma ideia muito forte. Aconteceu naqueles primeiros cinco anos eu escrever poemas. Era comum que o festival calhasse na época de exames, porque o festival ia ali por junho, julho, e muitas das vezes eu ainda tinha um ou dois exames para fazer na universidade. Era muito comum estar a estudar para os meus exames ou estar a ver o festival com os meus apontamentos. E ter exames de manhã e passar a tarde e a noite toda a ver filmes, e a estudar nos intervalos das curtas, e nos intervalos das sessões. Lembro-me de falar com o José Lopes, que ainda é funcionário da Câmara, mas que controlava a entrada e a saída do público, e de lhe dizer ‘Zé Lopes, eu preciso de estudar, eu não quero sair, eu quero ver a sessão seguinte, fico já aqui sentado’. E lembro-me de às vezes abrirem uma exceção para mim, porque de facto eu estava a estudar para os exames nos intervalos das sessões e às vezes eram 20 minutos, meia hora, e era o tempo que eu tinha para estudar. No meio de toda essa tralha que eu levava comigo dos livros e dos cadernos e das folhas em branco para rescrever coisas, acabava por estar sempre com uma caneta e acabava por tomar nota das primeiras impressões, que resultaram em poemas. Lembro-me que há 25 anos eu tive inclusive intenção de editar um livro de poemas, um poema por cada filme de entre todos os filmes que me tinham mais marcado. Curiosamente depois houve uma trapalhada, já nem me lembro bem o que foi, eu já tinha uma pequena editora de Coimbra e acabei por começar a trabalhar com outras editoras, outras chancelas, e aquele livro ficou perdido. É um livro que nunca chegou a ser publicado. Um outro poema creio que o roubei e o acabei por incluir noutras estruturas, noutras narrativas, mas o livro como um todo ficou perdido, creio que inclusive depois acabei por apagá-lo, não sei se ainda o teria numa impressão qualquer.
Portanto há livro escrito, não publicado, e agora perdido?
Estava a pensar nisso, se calhar nunca me preocupei em ir atrás desse livro porque eu julgo que eu não o tenho. Tive um crash num computador há muitos anos e por isso provavelmente esse livro estaria ali. Mas eu sei que o imprimi e que o enviei a pelo menos três pessoas, ocorrem-me três pessoas a quem eu terei entregue uma impressão. E agora penso: será que alguma delas guardou aquilo? Na altura eu era um poeta pouco conhecido, creio que tinha dois livros publicado, ou talvez um (...). Por isso a importância que me davam, ou a expectativa que teriam de que eu pudesse ser um escritor um bocadinho mais estruturado, talvez fosse pouca (risos). Talvez não me vissem muito distante dos poetas locais que vão tentando. Eu na altura estava a tentar também, ninguém saberia se eu poderia virar um escritor.
Acha que o desfecho das coisas é muitas vezes circunstancial?
Sim, sim. Eu lembro-me de que na altura a editora em Coimbra era uma pequeníssima editora e editavam com muito custo. Lembro-me que eu queria muito a publicação daquele livro. (...) Mas era um livro que se impunha um bocadinho à editora, que saía um bocado fora do circuito. Lembro-me de ela pedir ao festival um apoio, uma coisa mínima, porque era um livro breve e era impresso em materiais simples, não tinha imagens, não tinha nada. Mas lembro-me de ela ter pedido um apoio e o apoio não foi dado. E por isso o livro acabou por não sair. E depois eu também fiquei um pouco desiludido por não terem apoiado... É curioso agora pensar nisso. Que o festival na altura não achou interessante apoiar a edição do livro. Acho que foi por isso que eu desisti do livro, que deixei que ele caísse.
Acaba por voltar a escrever não sobre cinema, mas para cinema, com argumentos, como o do filme "Surdina", de Rodrigo Areias. Em que é que o processo da criação de um livro e de um argumento é igual?
Há umas sintonias, umas sintonias de atmosferas. Agora eu quando escrevo para ser filmado, um argumento, eu sinto que deixo os textos numa espécie de estrutura apenas, é como se montasse um certo esqueleto de um ser ao qual depois não dou a carne, não dou a pele. Porque isso depois compete ao realizador e aos atores que vão interpretar e criar a sua própria leitura. Mas fico muito assim, como que erguendo um prédio, mas não colocando as paredes e não definido onde ficam as janelas, nem traçando demasiado o conteúdo dos seus interiores. Então é um bocado estranho porque eu sei que estou a escrever uma coisa que sei que precisa de ser funcional, ou seja, que está instrumentalizada pela arte de outra pessoa. Sei que estou a escrever uma coisa que não vou poder dominar, que não me compete dominar. Compete-me ser uma espécie de ponto de partida. Não serei nunca um ponto de chegada, não poderei nunca tomar a decisão final em relação a nada. Então estou iminentemente dentro de uma equipa, que eu nem sequer conheço, porque eu quando escrevo o texto no máximo conheço o realizador, não sei quem ele vai escolher. Nem sequer posso muitas das vezes abeirar o texto quanto mais não seja da figura física de alguém. É muito estranho.
E é fácil abdicar, não quero dizer da liberdade, mas do controlo total da obra?
Não é muito fácil, não. É muito arreliante. Porque dá ganas de depois sermos donos do filme. E de despedirmos atores e de contratarmos atores. Dá ganas de escolhermos os cenários, [de dizer] se queremos esta casa e se não queremos aquela casa. Ou outra coisa qualquer. O segredo é de facto não nos envolvermos demasiado. Pelo menos no meu caso. A minha estratégia é uma fuga quase imediata, eu entrego o texto e desligo-me, tento não influir. Até porque como eu não sou realizador de cinema, se eu quisesse muito influir no processo da adaptação, da efetivação do filme, provavelmente destruiria tudo. E por isso tem de haver uma certa ausência para deixar que o esplendor da arte de outra pessoa se manifeste. Eu como me chamo Valter Hugo Mãe detesto as metáforas com filhos, mas é um bocadinho como deixar maturar uma coisa, deixar maturar uma pessoa, e seguir o seu próprio caminho, por mais que tenhamos sonhado um futuro para ela temos de deixar que ela própria decida para onde quer ir e afinal o que é que quer e o que tem de ser.
Também estreou no festival Curtas de Vila do Conde a série documental de Carlos Vaz Marques. É o protagonista de um dos episódios da série, cujo título é imponente: "Herdeiros de Saramago". O que é que o Valter herdou de Saramago?
É um bocadinho arrepiante, não é? Eu também acho que o título é um bocado estranho, porque não são só os que ganharam o prémio de Saramago que herdaram de Saramago, ou que de alguma forma sofreram influência ou inclusive manifestam na sua literatura algo que Saramago nos deixou. Mas é verdade que ao ter ganho o prémio Saramago, imediatamente essa assinatura desse prémio Nobel se impõe como uma porta aberta noutros lugares. E por isso, concretamente, por mais que a nossa obra possa ser meritória, como todos os vencedores do prémio, todos nós auferimos dessa benesse, dessa generosidade que o prémio representa. Mas eu gosto de pensar que além dessa coisa concreta, eu tenho que ver com o Saramago, ou gostaria de pensar que tenho que ver com o Saramago, pelo lado de compromisso com uma certa ética, ou uma certa esperança, numa intervenção no plano público de maneira a incentivar ou a motivar as pessoas a uma lisura, a uma melhor sociedade, digamos. O Saramago para mim era um grande escritor, um excecional escritor, e era um cidadão de boa fé. Mesmo que não estivéssemos de acordo com ele, eu reconheço-lhe sempre a vontade genuína de produzir entendimento e de participar. O que mais gostaria de trazer do Saramago seria ter mesmo essa capacidade de estar entre os outros como uma pessoa do bem.
Apesar de partir de si enquanto escritor, o documentário dá a conhecer mais do que isso, se é que é possível fazer esta separação do escritor do homem. Conhecemos os seus espaços, as pessoas com quem convive, a sua mãe. Foi fácil deixar o mundo entrar neste universo?
Não. Foi horrível. Torna-se um pouco mais fácil porque a Graça Castanheira (a realizadora da série) é muito paciente, delicada, transmite-nos uma certa confiança de não produzir devassa. E o Carlos Vaz Marques (autor da série), que é um entrevistador magnífico, que já me tinha entrevistado por várias vezes, merecia da minha parte uma atenção e um voto de confiança. Mas não é fácil, não. Eu pelo menos sinto-me muito autoconsciente, fico sempre a achar que talvez devesse mostrar outros espaços, ou que talvez as pessoas estejam à espera... As pessoas criam as suas fantasias em relação à vida de figuras que possam acompanhar um pouco à distância.
Preocupa-lhe a expetativa?
Não é tanto a expetativa. É mais saber se não há alguma coisa que possa ser ofensiva ou contraditória e que não fique explicada. Eu defendo muitas causas e luto por muitas coisas, mas de repente posso ter em casa algo que parece apontar no sentido contrário e que careceria de explicação, e ao não ser explicado pode apontar noutra direção, enfim. Eu admito que sou muito pouco paciente para preparar as coisas, sou sobretudo uma pessoa espontânea e prefiro ser assim a viver atazanado por uma espécie de cosmética contínua, durada e insuportável. E por isso quando eles foram filmar eu nem limpei o pó à casa. Eu lembro-me de a minha mãe dizer: "isto está uma porcaria, podias ter varrido o chão". E eu disse lhe: "eles apontam a cama para cima, não tenho paciência". Estava entalado entre duas viagens, eles iam estar aqui quatro ou cinco dias a filmar. Eu ia estar a chegar de um continente e passado quatri ou cinco dias saía para outro continente. Às vezes penso "será que não devia ter escondido algo na casa, não há algo que seja simplesmente palerma, que pareça uma falta de respeito com alguém?" Mas depois as coisas são como são, e precipitam-se, e ficam feitas, e pronto. Mas é muito estranho abrir a porta de casa para ser filmado. Porque a casa não é um cenário, é um lugar onde queremos estar à vontade e se temos de policiar a casa parece obsceno. Torna-se obsceno policiar a nossa própria casa. Devíamos viver sob aquela máxima "o amor é não haver polícia", ao menos dentro das casas. Devia haver apenas amor.
Nessa perspetiva, a escrita acaba por ser mais defendida face à imagem em movimento, que é algo fixo no tempo e que não pode ser mudada. A escrita pode ser revisitada. Sente-se mais escudado nas palavras?
Sim, as palavras têm sempre a benesse de poderem ser verdadeiras ou não. Por mais eloquentes no certo ou no errado podem ser sempre uma encenação do bem ou uma encenação do mal. E tudo é válido, no plano literário ou até no plano do pensamento. Todas as hipóteses podem contribuir para chegarmos a resultados e a um conhecimento que nos importa, que seja verdadeiramente importante. Através do texto, é curioso, acho que dentro das nossas áreas desenvolvemos uma coragem, e se calhar por isso é que somos escritores e não pintores, porque dentro da área que nos compete acabamos por ser muito mais bravos. Eu tenho alguns textos duríssimos, n’O Remorso de Baltazar Serapião, por exemplo, ou noutras passagens de outros livros meus, e eu enfrento-os no texto com alguma naturalidade e com bastante capacidade. Mas se vejo alguma imagem... Eu costumo dizer que até uma telenovela me pode comover ou me pode incomodar. Quando vejo numa pintura ou num filme alguma imagem que corresponde àquilo que eu escrevi, se tiver a mesma energia, eu talvez não a consiga suportar. É curioso como de repente somos valentes dentro dos limites da nossa linguagem escolhida, preferencial. E saindo da nossa linguagem de preferência acusamos a vulnerabilidade em pleno.
Vila do Conde tem um papel central no filme, nos próprios planos e movimentos de câmara que nos deixam sentir a cidade. Diz que continua a viver ali "por opção", convicto de que lhe "faz bem". O que é que Vila do Conde tem de tão especial?
Uma certa quietude e a lonjura. Eu preciso de me sentir longe. É curioso. Eu gosto de passear, de ir ver como são as coisas, mas depois preciso de sentir que estou suficientemente longe para regressar a uma absoluta normalidade. Não conseguiria estar num espaço que me exponha constantemente ou que me faça ter a impressão de que tudo é palco. Isso acontece-me muito em Lisboa, um bocado no Porto. Essa impressão de estar constantemente reconhecido, de chegar aos lugares e ser reconhecido não por viver no lugar, normalizado, habitual, mas por me terem visto na televisão ou no jornal, ou saberem que sou aquele indivíduo que escreve aquela crónica... Esse palco permanente é algo que me assusta. Não me desagrada, fico muito grato que as pessoas me cumprimentem, fico até feliz que possa ser reconhecido por alguém. É mais o sentir que estou a ser constantemente observado e que não posso verdadeiramente relaxar ao ponto de ser um cidadão mais do que um escritor. E Vila do Conde tem isso. Aqui ninguém me liga (risos). Talvez aqui não se leia tanto. Não há livrarias. Aliás, Vila do Conde não tem livrarias. É uma coisa um bocadinho chocante para uma cidade com tanta inspiração artística. Mas não tem uma livraria.
Como é que um escritor vive onde não há livros? Compra online ou traz das viagens?
Trago muito das viagens. Embora também compre muito online, agora cada vez mais. Mas eu adoro ir para as livrarias, adoro comprar aquilo que eu nem sei que existe, edições que saíram e que eu nem dei conta. Descobrir autores, autores de que nunca ouvi falar, autores novos. Compro sobretudo livros de poesia, e a poesia é muito dada a estreias e das editoras marginais. E para mim é fundamental ir onde a poesia está, onde os livros estão e deixar-me ir por eles. Em vez de ser eu exatamente a saber o que quero. Deixar que sejam os livros a entrar na minha vida e muitos autores começaram assim, nas minhas leituras sem que eu desse conta, vendo a capa ou pelo impacto de um título, se o título for grandioso eu vou imediatamente ver o que tem dentro. Agora adoraria que Vila do Conde tivesse uma livraria, um espaço onde as pessoas que gostam de livros se possam juntar. Tenho de ir à Póvoa [de Varzim], onde tem várias livrarias, algumas muito boas livrarias, e depois estou sempre a correr para o Porto aflitinho (risos). Todo o universo das artes aqui precisa muito do Porto. Mas eu não me importo de haver alguma distância. Não me importo de fazer uma viagem de carro para saber que depois regresso à normalidade. É absolutamente magnífico poder haver um lugar onde possamos sair despenteados à rua. Eu estou careca, mas sinto que posso ir ao correio despenteado e ninguém critica, ninguém quer saber. Ninguém nada.
Isso é que é estar em paz?
É uma certa paz, sim. Uma vez nos EUA assisti a uma palestra de uma sobrevivente de Auschwitz, Rena Finder, nunca mais me esqueci desta senhora. E eu perguntava-lhe o que era para ela a felicidade. E ela dizia-me: "a normalidade". Simplesmente poder ser normal. Porque obrigada àquele grotesco, orientada e massacrada para todos os detalhes, quando pôde normalizar a vida e por e simplesmente ser uma moça, crescendo, casando e tendo filhos, ela entendeu que não se podia ser mais feliz do que ao ter uma vida normal, estar inserida na pura normalidade. E é a normalidade depois que nos permite depois uma grandeza interior, ler um livro e potenciar o que o livro nos ensina, observar uma tela, um quadro. E eu tenho muito isso: a felicidade passa muito por podermos estabelecer uma rotina sem sobressalto. Estar num lugar e ter um hábito que não tenha sobressalto.
Como ir ao café Pátio, estar com a Dona Antónia (mãe) e comer caril de frango. Normalidade.
(risos) E o Crisóstomo, o meu cão.
No documentário surge a cantar. A dada altura admite: "sou mais o cantor que posso ser do que o que queria ser". Esta autorreflexão constante é algo que faz deste sempre ou que com o tempo se agrava?
É cada vez pior. Vou ficando cada vez mais autoconsciente. E ao longo do tempo o trabalho vai-se adensando, vou tendo cada vez mais textos escritos, e há uma sensação de já ter feito. E é preciso encontrar pontos de fuga em relação à pessoa que fui, ou que sou. Preciso de acreditar que ainda tenho um livro para escrever, e eu não quero escrever o mesmo livro, quero escrever um livro que faça falta ao compêndio dos meus livros.
Tem medo da repetição?
Tenho muito medo da repetição, e por isso é que se calhar as letras [das canções] me incomodam, por serem sempre as mesmas, por ter de cantar aquela coisa em sítios diferentes perante pessoas diferentes, porque estou a repetir algo cuja energia não se repete, não consigo repor a energia. Então sinto que estou a mentir. Sinto que aquilo não faz sentido nenhum, que até pode ser ofensivo para as pessoas. Essa meditação constante é muito própria de mim. Uma insatisfação profunda, nunca fico muito convencido de que as coisas são suficientes. Edito sempre os livros com a sensação de que me quero livrar deles, mas que talvez devesse passar duas gerações a corrigi-los.
O Valter figura no filme "O Sentido da Vida", de Miguel Gonçalves Mendes, também apresentado no Curtas Vila do Conde. O que é que aprendeu no processo de rodagem?
O projeto começou numa ideia bastante intransmissível do Miguel Gonçalves Mendes. Quando ele me convida eu ainda não o conhecia pessoalmente, tinha visto o José e Pilar e o Autografia, sobre o Cesariny, mas nunca tinha estado com o Miguel. E o Miguel diz-me que gostava que eu entrasse no seu novo documentário, e eu numa viagem a Lisboa janto com ele. Disse-lhe logo que sim, muito entusiasmado até. E durante o jantar tentei entender sobre o que é que o documentário seria e não entendi absolutamente nada. A ideia dele era francamente intransmissível. Ele queria encontrar o sentido da vida, eu dizia lhe que para mim isso estava perfeitamente definido, eu sei perfeitamente porque é que existimos, inclusive disse-lhe. Disse-lhe que talvez até pudesse poupar todo o investimento do filme porque estava-lhe a dar a resposta. Mas a verdade é que o filme foi progredindo e eu fui assistindo à montagem, às imagens, e à maturação de uma ideia, como se a cabeça do Miguel estivesse omnipresente nos meus dias e eu fosse vendo aquele puzzle sendo decifrado devagar. E a experiência foi fascinante. Ele terá começado a filmar em 2011 (...). Ele acompanhou a escrita d’A Desumanização e dos Homens Imprudentemente Poéticos. E foi muito incrível. O Miguel tem uma coisa muito boa: é muito franco, às vezes de uma franqueza muito bruta, que nos retira de todas as peneiras e ilusões. E por isso se nos quisermos enganar a nós mesmos ele não permite. Esse convívio e ser filmado por ele nessa espécie de escola de veracidade é muito valioso. Todos nós devíamos ter assim um amigo que de repente nos aponta uma câmara e nos abana o suficiente para que não possamos estar a mentir nem nos enganar a nós mesmos. Acho o processo muito caro. Muita gente deve pagar fortunas por terapias para este resultado, e a mim ficou-me grátis porque o Miguel tratou disso (risos).
Uma vez que já disse que tem a resposta... Afinal, porque é que existimos?
Eu creio que o sentido da vida está nos outros. Eu creio que nós somos puramente plurais. Temos uma cultura que investe euforicamente na definição de uma individualidade, mas a verdade é que a nossa natureza é pura pluralidade. E por isso, como digo n’A Desumanização, a humanidade não começa em mim, começa no outro. A humanidade é um conceito coletivo. Ninguém sozinho é a humanidade, apenas com a alteridade se consegue falar nesse projeto da humanidade e por isso a justiça de vivermos está em sermos amados, em sermos aceitos e em estarmos aí pelos outros. Para mim foi sempre muito claro. Nós não temos valentia na solidão. A solidão não é um objetivo humano. É uma espécie de corrupção da existência, a solidão. Não é natural. Pode ser um instrumento de maturação, mas não pode ser nunca um objetivo. De maneira que para mim, como digo num livrinho pequenino que escrevi para os miúdos, o paraíso são os outros, porque de facto o sentido da vida são os outros.