Foi durante o confinamento, "enquanto estava fechado em casa", que Tomás Wallenstein se voltou a aproximar de um velho piano, desde sempre presente na sua vida, para nele se apropriar de canções e músicas de outros. E o que começou como uma mera forma de passar o "demasiado tempo livre", depressa se tornou em algo mais sério, como se comprovou em setembro de 2020, quando o músico e vocalista dos Capitão Fausto se apresentou pela primeira vez a solo e ao piano, num concerto no Lux, em Lisboa, depressa multiplicado em muitos mais por esse país fora. Ao longo do tempo foi assim compilando um vasto repertório, guiado apenas por três simples critérios: canções de outros autores, cantadas na língua portuguesa e que o próprio gostaria de ter escrito. O resumo desse trabalho foi agora transformado num álbum, Vida Antiga, no qual coabitam temas de nomes como Erasmo Carlos, Zeca Afonso, B Fachada, Luís Severo, Cartola, Tim Bernardes ou José Mário Branco, intercalados por duas composições de Satie e Debussy – "uma ousadia", como admite nesta entrevista à Must, que antecede a primeira apresentação ao vivo do disco, marcada para dia 24, na Culturgest, em Lisboa.
Que Vida Antiga é esta?
O título vem de uma música do Erasmo Carlos, mas encaixa muito bem na ideia deste disco, que funciona como uma espécie de fotografia destes dois anos, também eles correspondentes a um período de reflexão e de transição dessa tal vida antiga para uma nova etapa. Há uma sensação de troca e até de compromisso entre passado e futuro que estas canções me transmitem, como é o caso do tema Vida Antiga ou do Eu Vim de Longe, do José Mário Branco. Há de facto um conceito de transição muito presente no álbum, também de homenagem ao que já passou.
Sendo um álbum apenas de versões, qual foi o critério para a escolha dos temas?
Foi um critério muito pessoal, que teve a ver com o que estava a sentir nesse momento e com o que pretendia transmitir. Mas já nos Capitão Fausto funcionamos assim, a nossa música é sempre muito pessoal e as letras autobiográficas, até porque não sei fazer música sem a pessoalizar. E também não quis fazer música nova, isso está reservado para a minha banda, daí a opção por versões de autores de língua portuguesa que tanto admiro.
E porquê a opção pelo piano?
O piano é um amor muito antigo e como tinha demasiado tempo livre disponível, por causa do confinamento, tive essa ideia, quase académica, de aprender a tocar essas músicas de outros que tanto gosto, embora cingindo-me mais à interpretação. Aprendi muito nesse processo. E isso tudo tem a ver com a minha relação com o piano, com um piano em particular aliás, que pertenceu à minha bisavó, à minha avó, à minha mãe, veio a dada altura para o meu quarto, quando ainda morava com os meus pais e que hoje está em minha casa. Era o piano que estava na sala dos meus avós, quando lá gravámos o primeiro tema dos Capitão Fausto. E também esteve na casa onde a dada altura morámos todos juntos. É portanto um instrumento que me persegue (risos).
É um álbum aparentemente muito despojado, concorda?
Sim, foi um álbum gravado num único dia, nos Estúdios Arda, no Porto, porque têm lá um piano muito bom. Saí de Lisboa às seis da manhã e saí de lá às nove da noite. Voltei com um disco feito, mas depois fiquei alguns meses sem lhe pegar, até que lhe acrescentei alguns pequenos detalhes de produção e decidi finalmente editá-lo.
Como decidiu o alinhamento do álbum, bem mais resumido que o repertório dos espetáculos ao vivo?
De forma muito instintiva, até porque os temas começaram a puxar-se uns aos outros. Apenas queria ter temas de autores que admiro, que gostaria de ter feito e com os quais me identifico. E a partir daí consegui criar uma espécie viagem musical, tanto geográfica como temporal, que cruza continentes e atravessa todo o século XX. Foi também esse o meu objetivo quando comecei a tocar no piano, ainda durante o confinamento, tentar criar uma viagem interna através da música, numa altura em que não nos era sequer permitido sair de casa, mas essa foi uma conclusão a que só cheguei mais tarde.
Quais foram os maiores desafios neste disco, as versões mais complicadas?
Na interpretação de Debussy atirei-me claramente para fora de pé, porque não estudei piano, sou autodidata e é uma composição muito complexa, que levei mais de um ano a decifrar. Hoje admito que foi um risco muito ousado, mas creio que consegui não ser desrespeitoso. Nas versões também houve alguns desafios, como o Cantar Alentejano, mas essa é uma canção tão forte que se autossustenta, com o Zeca Afonso a sair por ali afora, independentemente de quem a canta. O outro foi o Eu Vim de Longe, que é um tema muito longo, quase como um mantra que se repete e eu não queria correr o risco de o tornar monótono. Mas os concertos que fiz antes ajudaram-me muito a encontrar o tom certo para cada uma das versões. E quando gravei não senti, de todo, que fosse um disco desafiante, até porque o objetivo era manter a simplicidade.
E estes espetáculos de apresentação vão limitar-se ao álbum ou vão haver novas versões?
A vantagem de tocar versões é que o repertório é infinito, embora a forma de tocar e os arranjos se mantenham. Houve muitas que ficaram de fora do álbum e que interpreto sempre nos espetáculos, incluindo alguns temas dos Capitão Fausto, que por serem tocados ao piano mudam bastante no seu contexto original. As canções não vivem apenas através dos seus autores, mas sim na voz de quem as canta. Antes de existirem gravações era assim que as canções se perpetuavam, de boca a orelha, como se diz no Brasil.
Tomás Wallenstein – Apresentação de Vida Antiga
Culturgest, Lisboa. 24 de fevereiro, sexta-feira, 21h. €18
Cineteatro Alba, Albergaria-a-Velha. 25 de fevereiro, sábado, 21h30. €8