São cerca de 200 a 250 as pequenas, grandes decisões que tomamos sobre comida todos os dias. Carlos Ribeiro, neurocientista, quis saber porque comemos o que comemos e de que forma. As respostas estão algures entre o cérebro e o estômago e as descobertas dos cientistas estão apenas no início. Nascido na Suiça, estudou na Basileia, viveu em Viena, Áustria e está há cerca de uma década em Lisboa, onde lidera uma equipa de cientistas da Fundação Champalimaud. Passou pelo Congresso dos Cozinheiros, durante a Lisbon Food Week, e falou da complexa relação entre o que comemos e o que pensamos.
Diz que não existe uma dieta ideal. Andamos todos enganados com o que comemos?
Existe a possibilidade de uma dieta ideal para cada pessoa, mas como se define essa dieta ideal é um problema que ninguém ainda abordou cientificamente. Por exemplo aquela possibilidade de definir uma dieta através do ADN não passa de ciência ficção. Não existe uma base científica. Hoje, sabemos o que é uma boa dieta, ou seja, sabemos o que é não saudável, mas a dieta ideal é uma dieta optimizada para cada pessoa para prevenir doenças, entre outras coisas. E sobre isso ainda sabemos pouco.
Mas sabemos que somos o que comemos – só que no físico isso é evidente, no cérebro não conseguimos vê-lo. É verdade que existem certos alimentos que podem ajudar a cabeça a trabalhar melhor?
Não é tão simples como isso. O que está claro é que para quem tem certas doenças, os alimentos podem fazer a diferença. Quem tem por exemplo autismo, sabe-se que há nutrientes que podem reverter características da doenças. Claro que são estudos e casos muito específicos. Mas o que é importante perceber é que não estamos a falar de superalimentos, não é isso que faz com que vamos pensar melhor, mas sim ter uma dieta adequada e equilibrada porque tal vai ajudar o cérebro a não ter problemas. No mundo ocidental, temos a ideia de que se tivermos comportamentos negativos para o funcionamento do nosso cérebro basta depois reverter essa tendência. Mas não sei se comer bagas goji é a solução ideal.
Tornou-se quase impossível decidir o que comer e como, na verdade…
É um grande problema. Alguns psiquiatras estão a diagnosticar um novo tipo de doença mental que é a obsessão com o ser-se saudável. Pode ser uma pressão tão forte que se torna negativa. E creio que um dos grandes segredos de uma boa nutrição, não ideal, mas boa, é que seja diversa, equilibrada, nem muito nem muito pouco, o menos processada possível, com pouca carne, isso já resolve 98% dos problemas. Depois, podemos fazer aquele esforço extra, mas desse sabemos ainda pouco.
Mas podemos ter a certeza que os alimentos que comemos podem ajudar-nos a viver mais ou menos tempo, melhor ou pior…
Claro. Existe agora uma vertente muito interessante no tratamento do cancro, que são dietas que são feitas para um determinado tipo de cancro e que em conjunto com o tratamento poderão duplicar o efeito da quimioterapia. Mas são apenas estudos ainda. Isso sim será verdadeiramente revolucionário.
Está há 10 anos na Fundação Champalimaud. Em que está a trabalhar neste momento?
Um dos nossos grandes objectivos e o foco de estudos que ainda não foram apresentados é a relação entre o cancro, grande foco da Fundação, e a nutrição. Pode ser que as doenças do cancro modifiquem com a alimentação e estamos a ver com o grupo com quem trabalhos em Glasgow se podem existir dietas ideais para cancros diferentes. Estamos apenas a fazer perguntas. Outra grande parte do nosso trabalho é perceber como as bactérias que existem no estomago falam com o cérebro. Estamos a avançar rapidamente para várias respostas.
O nosso cérebro pode explicar porque é que há pessoas que gostam mais de comer do que outras?
Claro que sim. É o cérebro que controla muitas dessas coisas, claro que a parte mais importante é cultural. Mas existem exemplos de doenças genéticas e de alterações no cérebro que fazem com que nós não tenhamos escolha e acabemos a comer mais. Mas isso também tem a ver por exemplo com a nutrição dos pais, isso tem uma influência grande na forma como o cérebro é programado para comer. Também fizemos um estudo sobre isso. A ideia geral de que quem tem obesidade ou comportamentos nutricionais desadequados são apenas pessoas preguiçosas ou sem autocontrole não olha para o problema da forma certa. É como olhar para alguém que tem apendicite e dizer que o corpo não tem autocontrolo sobre isso. Em muitos casos, é uma programação do cérebro que tem a ver com a parte genética ou com o comportamento dos pais, o que depois modifica o cérebro e faz com que as pessoas não consigam controlar-se da mesma forma.
Como ter ansiedade e ter muita fome ou nenhuma.
Exatamente. Depois há toda a parte de bulimia e anorexia nervosas, esta última nós ainda não conseguimos compreender bem porque não entendemos como é que a pessoa tem uma perceção diferente do seu próprio corpo. Ainda há muito para descobrir.
Ligamos muito a comida ao prazer, tal como o sexo. Porque é que duas coisas tão diferentes são tão próximas?
Temos parte do cérebro que controla o prazer e que está programada para repetir tudo o que nos dá prazer. A comida é a parte mais básica, o sexo, as interacções sociais, que também nos dão uma forte recompensa, tal como jogos de apostas ou substancias narcóticas. Todos estes exemplos viajam numa parte do cérebro onde existe essa tal recompensa e uma das teorias que existe sobre a obesidade e a diabetes tem a ver com o facto do nutriente que nos dá mais prazer ser o açúcar. E a nossa comida hoje em dia tem muito açúcar, nós reprogramamos o nossos cerebro para estar habituado a receber muito açúcar, mas como não podemos estar eufóricos o tempo todo, o cérebro baixa o efeito e depois vamos precisar de cada vez mais. Tal e qual as drogas, a overdose é isso. Existe uma teoria que defende que a obesidade tem a ver com isso mesmo, com querer esse kick.
Parte desse prazer tem a ver com o aspecto que a comida tem – nunca ligámos tanto à estética dos nossos pratos como agora. Porquê?
É uma parte muito importante, essa ideia de comer com os olhos. Só começamos agora a estudar isso, mas uma refeição que seja feita num contexto positivo, com amigos, com família, tem um efeito muito mais positivo, tal como se a comida estiver bem preparada e com bom aspecto. Existe uma indústria gigantesca que utiliza isso. O Instagram está cheio de food porn, a parte sensorial é muito importante, mas é também importante que esta depois corresponda à realidade. Nós olhamos para a comida e pelo seu aspeto pensamos que vai ter muita proteína ou certos nutrientes e depois comemos e não tem e o nosso cérebro fica com problemas. Muitas indústrias metem colorantes, intensificadores de sabor, coisas artificias, depois o cérebro acha que vai receber esses nutrientes e não recebe. Há quem diga que isso pode ser muito negativo.
Mas depois há pessoas que não ligam nenhuma à comida, comem quase só para sobreviver. Isso não é estranho?
Também se defende que essas pessoas têm uma perceção do prazer diferente. Um dos problemas é que a parte cultural é muito muito importante no ser humano e isso é muito difícil de controlar em laboratório e por isso usamos os ratinhos ou a mosca da fruta, que não têm esse elemento, e que nos ajudam a perceber como é que o cérebro funciona. Há uma colega meu australiano que tem um laboratório em Sydney e que diz que quando se trata de morte, quanto menos melhor, de sexo, quanto mais melhor, mas na comida isso não existe, demais pode ser exagero e a menos pode ser perigoso. Por isso é que muitos cientistas acreditam que a relação entre a comida e o cérebro é uma das mais complicadas que existe. Nós precisamos de proteínas, açúcares, gorduras. O problema é quando comemos demais e isso acontece porque comer dá-nos esse prazer. Mas também porque há milhares e milhares de anos não havia tanta comida como há hoje quando vamos ao Pingo Doce. Então estamos programados para pensar: "vou comer um bocado mais agora porque amanhã já não vai haver tanto." Mas no mundo ocidental onde vivemos amanhã vamos ao Pingo Doce e continua a haver comida.
Todas as abordagens que existem que tiram nutrientes estão erradas. Por exemplo a abordagem que retira gorduras é uma catástrofe porque o nosso corpo precisa desses nutrientes – o problema é sempre encontrar esse equilíbrio. Há vitaminas de que precisamos mais do que outras.
Mas uma grande parte do sucesso de uma dieta de emagrecimento está na nossa cabeça?
Sim, mas está comprovado que uma pessoa que foi obesa e que portanto reprogramou o seu cérebro para precisar de uma determinada quantidade de comida nunca consegue voltar à mesma base. Tal como um alcoólico.