Conversas

Na estrada com Madonna

Foi o fotógrafo português escolhido por Madonna para imortalizar os ensaios e o quotidiano da sua mais recente digressão, Madame X. A lente clínica e clássica de Ricardo Gomes tem apanhado na última década, alguns dos talentos mais vibrantes deste mundo. Patti Smith, Yohji Yamamoto, Pete Doherty e Tilda Swinton, fazem parte de um universo que se constrói de forma fulgurante e quase sempre a preto e branco.

Foto: Ricardo Gomes
01 de outubro de 2019 | Tiago Manaia
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Uma videochamada. Ricardo Gomes está em Nova Iorque, no hotel onde tem dormido nos últimos dias. Olhos ainda pouco despertos, como quem acaba de acordar, as noites de trabalho têm sido longas, acabam muitas vezes com o nascer do sol. Há três meses que documenta, fotografa e filma, os ensaios de Madonna e sua Madame X Tour – os concertos da cantora que chegam a Portugal no início de janeiro.

"Prefiro falar em inglês, estou mais habituado", nas frases guarda o sotaque da Madeira que o viu crescer. Fala enquanto coloca fios com medalhas à volta do pescoço. Parecem funcionar como pequenos amuletos. Os movimentos que faz desvendam as tatuagens que tem nos braços. "Gosto muito de clichés" – refere-se a um corvo negro e à palavra mãe. Ao mencionar as suas tatuagens, introduz com ironia o seu universo fotográfico, onde as poses se imortalizam a preto e branco, e a atitude rock n’roll se esbate nos contrastes. Triste coincidência, na semana em que o entrevistámos, desapareceram dois fotógrafos que certamente o influenciaram, Peter Lindbergh e Robert Frank. "Eu gosto de trabalhar a partir de algo que toda a gente pensa já ter visto. Aos lugares comuns tento juntar coisas novas, pode ser um rosto ou uma paisagem, mas é na maneira como as misturo, que a imagem se torna minha".

elegância e sobriedade na sua luz. Muitos músicos, corpos e detalhes desses corpos. As suas séries fotográficas intercalam pessoas e objetos. Ricardo fotografa cirurgicamente os espaços onde se encontra, tem um olhar que dispara em todas as direções – cabos, lâmpadas, colunas, pranchas de surf. "Posso estar na praia durante horas à procura de silhuetas ou de nuvens no céu, que depois vou misturar com cidades ou retratos. E de repente para mim, há ali uma vibe sexy". A câmara que transporta nunca o separa do mundo, não cria barreiras entre ele e o modelo que fotografa, "dá-me uma espécie de poder", e a magia acontece nessa estranha sedução. 

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Fala pausadamente, com poucas palavras descreve o fôlego que o motivou ao longo destes últimos dez anos. "Honestamente, ser rejeitado pelas pessoas sempre me fez querer mais." Não há amargura no tom, apenas o sentido prático inabalável que o caracteriza.  Lembra-se de dezenas de encontros profissionais sem efeito, – "as pessoas ligavam-me, queriam conhecer-me, e quando nada acontecia, sentia vontade de provar que um dia ia ser tudo diferente". Até chegar ao círculo fechado de colaboradores de Madonna, o percurso foi longo.

Foto: Ricardo Gomes

Em 2007, com 17 anos, trocou a Madeira por Lisboa. Na ilha tinha tido aulas de teatro para vencer a timidez, mais tarde foram as artes visuais que despertaram um impulso, mudou-se para o continente, estudou no Instituto Português de Fotografia. Sentia-se sozinho em Lisboa? Ou a capital funcionou como o rastilho para uma vida que iria mudar para sempre? "Eu posso estar em qualquer lado. Há pessoas que precisam de outras para sobreviver, eu consigo estar sozinho. Consigo adaptar as minhas necessidades ao sítio onde estou. Não tive saudades de nada por um segundo". Com os pais criou então uma rotina que mantêm, falam-se todos os dias. 

De Lisboa começaram as idas e voltas para Londres, fazia pequenos trabalhos para revistas de moda independentes, mas foi quando se mudou para Paris, em 2011, que o processo se acelerou. "Comecei a tentar ter encontros com agências de fotógrafos. Queria conhecer pessoas no meio da moda, era esse o meu objetivo em Paris. Tanto podiam ser stylists ou agentes. Queria conhecer pessoas". Acabou por ser o booker de uma das maiores agências de manequins a dizer-lhe que acreditava no seu trabalho, apesar de sentir que Ricardo ainda não tinha encontrado a sua própria linguagem fotográfica. O elogio chegava com uma crítica, – "e foi aí que comecei a fotografia a sério, com essa frase do Rodger da Success Models". 

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Foto: Ricardo Gomes

Fez então reset nas suas fotografias, a agência de Rodger começou a enviar-lhe caras novas para fotografar, – "e no meio disso, o rock n’roll aconteceu, primeiro fotografava grupos pequenos, seguia-os para os bares onde iam e umas pessoas acabaram por me levar a outras. Alguém me apresentou ao Pete Doherty, e mais tarde foi o Glen Matlock dos Sex Pistols... E bom, eles são personagens".

Como se desenvolve uma relação com uma aura torturada como a de Pete Doherty? Na época em que namorou com Kate Moss, viu a sua imagem explorada ao limite, – "Ele não se importa mesmo que estejas à frente dele a tirar-lhe fotografias, he’s just fine". A entrega acontece na ausência.

Ricardo não deixa que a notoriedade dos seus modelos lhe mude o ritmo cardíaco. Com o designer japonês Yohji Yamamoto a intensidade foi outra, "Não sei o que aconteceu. Talvez tenha sido só o facto de estar sentado com ele numa sala. Quando acabei de o fotografar não parava de pensar naquele momento. Há simplicidade e humildade, há a maneira como te fala, há a história dele e a forma como aborda a moda. Estava tudo à minha frente."

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Foto: Ricardo Gomes

No meio de tantos encontros, de cidades que vai acampando sucessivamente, sente que já viveu várias vidas, e os déjà vus que lhe atravessam o cérebro constantemente, não param de o assustar, "quase todas as semanas tenha a sensação de já ter estado em sítios que descubro pela primeira vez. E por isso não tenho qualquer vontade de ser hipnotizado". 

É místico? – "Acredito no oceano. Quando olhas para o horizonte e está tudo vazio, as possibilidades são infinitas". 

E como a vida não para de lhe dar sinais, foi frente a uma das mais belas vistas do horizonte Lisboeta que conheceu Madonna em janeiro de 2019 – no Panorâmico de Monsanto. Ricardo foi contactado para fotografar os bastidores de um documentário realizado pelo português Nuno Xico, colaborador de longa data da cantora. "Estive em Paris tantos anos a trabalhar, e vim de lá até Lisboa para fotografar este trabalho incrível. Senti-me humilde e feliz. Lisboa é a cidade onde comecei a fotografar, mas onde não tive oportunidades."

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No dia a seguir às filmagens a equipa de Madonna encorajou-o a ir para a rua tirar fotografias de prédios, portas e grafitis, – "estava a explorar a Lisboa como fazia nos tempos de escola, só que agora era num projeto gigante. Percebi o quanto a vida podia ser cómica."

A sua colaboração com a cantora não parou desde então. São da sua autoria, as centenas de fotografias e vídeos que invadem as suas redes sociais. 

Madonna continua a ser sinónimo de música que se exprime também através da imagem. Há mais três décadas que a sua pertinência visual é política, um manifesto de emancipação. Como quando lançou o livro Sex, sobre as suas fantasias sexuais, na altura fotografado por um jovem Steven Meisel, ainda antes de ser aclamado e se tornar mundialmente conhecido com as capas que realizava para a Vogue Itália. "Ela acredita mesmo no processo criativo das pessoas com quem trabalha. Acredita também que podes sempre fazer melhor e leva-te até ao limite. A Madonna não acredita que possas viver na tua zona de conforto". 

Foto: Ricardo Gomes
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Assim, as imagens de Ricardo têm deixado o preto e branco para ganhar cor, e como muitas são divulgadas no Instagram em primeira mão, há momentos em que a sua Leica é substituída por um iPhone, "Não há drama. No início senti quase que estava a desrespeitar a razão pela qual comecei a fotografia. Com o telefone não medes a luz, só olhas, pensas, carregas no botão e a fotografia acontece. Mas estamos em 2019, e agora o mundo é todo sobre luz e tecnologia. Não sei como explicar, às vezes parece que o preto e branco prende o imaginário das pessoas ao passado".

Nos ensaios de Madonna estão presentes todos os seus temas, os universos que se dedicou a fotografar ao longo dos anos interagem entre eles, "há músicos incríveis portugueses que trabalharam com os Xutos ou com a Cesária Évora, e ali está ela... A nossa líder, a nossa boss... Os bailarinos, alguns são novos e estão a começar, outros já estiveram em digressão ao seu lado. É muito inspirador, e quase não te apercebes da magia que está ali, porque o fazes quotidianamente. Por isso todas as manhãs tento meter os ponteiros a zero, para não me sentir demasiado confortável".

Quando se fala em fotografias de sonho, Ricardo larga apenas um nome, "Bob Dylan, gostava de o fotografar antes de morrer".

Vira agora o telefone e a videochamada mostra-nos a paisagem da sua janela. À sua frente está o horizonte de Nova Iorque, prédios que se multiplicam, "talvez esta vista sobre a cidade diga algo sobre os sonhos, quando olho apercebo-me de onde estou, e o que faço". Ricardo volta a falar de tatuagens. A primeira que fez uma, ainda às escondidas dos pais, foi um X. Uma coincidência, assim se chama o último álbum de Madonna, Madame X. A vida é um mistério, já nos cantava em Like a Prayer.

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Foto: Ricardo Gomes
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