Ao longo da conversa, Nuno Mendes (Lisboa, 1973) utilizou cerca de uma dezena de vezes a palavra paixão, entre outras da mesma família. Por outras palavras, tal significa que estamos perante um Chef que é bem-sucedido, mas que, acima de tudo, se move ao compasso da paixão, da criatividade ou do prazer. Muito mais do que ao sabor do sucesso. Nuno Mendes apresenta-se com uma grande barba e as tais tatuagens que já são uma característica dos chefs, no geral. Ou como disse o próprio e bem: "Os chefs de hoje são um bocadinho mais rock stars do que chefs." Chegou ao estúdio de fotografia ligeiramente atrasado e apresentou desculpa uma série de vezes. Sorry, sorry! e outra vez Sorry! é o resultado de mais de uma década a viver em Londres e a evidente pontualidade britânica a falar mais alto.
Dono de uma simpatia do tamanho do seu sucesso, o mesmo não acontece com o ego. Não, este não é mais um chef inchado. Este não é mais um chef mau, daqueles que vemos na Televisão, com um feitio de cortar à faca (e uma faca profissional, logo muito mais perigosa): "Eu nunca implementei o terror [na cozinha]. Para mim, não é natural, não consigo ser assim. Se eu tivesse de ser agressivo, faria outra coisa [que não ser chef]", confidencia-nos. "Eu trabalhei numa cozinha, em Nova Iorque, que era incrível no que respeita ao produto que lá chegava e à técnica que se usava, numa altura em que não havia nada comparável na Big Apple. Porém, havia uma energia negativa, uma anger constante… Havia pancada na cozinha, pessoal a atirar tudo ao chão e a ir-se embora… Isso entristeceu-me e não consegui lá ficar." Como nos filmes e séries? É a pergunta que lhe faço. "Exactamente como nos filmes e séries", confirma. E mantém a descrição: "Chefs a agarrarem cozinheiros pelos colarinhos e a gritar. Eu olhava para as pessoas que lá trabalhavam, cozinheiros e cozinheiras, e estavam todos destruídos e miseráveis. Depois olhava para os pratos que saíam da cozinha e via que toda aquela suposta beleza – o produto que usávamos era mesmo second to none – murchava um pouco porque a [má] energia era muito presente. E eu não sou assim. A cozinha para mim é feliz. Gosto de criar ambientes onde haja diálogo, espaço para pensar, criar, falar de vários temas e, claro, para nos ajudarmos uns aos outros. Eu não tenho espírito de agressividade, nem de negativismo."
Isto traz-me à memória aquela velha questão que defende que, se cozinharmos com amor, a comida sai sempre melhor. Em sendo verdade, como pode uma cozinha de ambiente infernal servir pratos de bradar aos céus? "Muitas vezes, as pessoas [clientes dos restaurantes] não têm a sensibilidade para ver essa energia. Não notam ou nem sequer pensam nisso. Ou talvez não seja publicamente reconhecido que essa cozinha funcione assim. Eu deixei de ir a [determinados] restaurantes por saber que há esse ambiente. Se sei que as pessoas estão infelizes e tristes na cozinha e que as pessoas à frente do projecto não são boas, pura e simplesmente não me interessa. Há fantásticos cozinheiros e há fantásticas pessoas. E há muitos cozinheiros que não são pessoas fantásticas e desses eu não gosto. Tecnicamente podem ser incríveis, mas se são ‘intragáveis’ como pessoas…" Ainda assim e apesar dos tv shows e de todo o burburinho em torno deste estilo de chef-cheio-de-mau-feitio, no mínimo, garante-me que o cenário está a mudar. Para melhor, naturalmente, não fosse Nuno Mendes um indiscutível positivista: "A restauração mudou muito nos últimos 10 a 15 anos. Há uma década, as cozinhas eram todas caves de prédios pequenas, com pouca extracção e abafadas… No fundo, eram espaços difíceis e agressivos. Naquele tipo de environment era muito difícil ser-se positivo e criar… As pessoas que apareciam na cozinha eram ‘as rejeitadas da sociedade’. Eram pessoas que não sabiam fazer mais nada e então iam para a cozinha descascar batatas e era aí que tudo começava. Era essa a atmosfera nas cozinhas." Nitidamente, o mesmo não se passa hoje. Quando eu digo o mesmo, falo da figura do chef. E de todas as pessoas que só querem um lugar ao sol, ou melhor, ao lume, nos grandes fornos desse globo fora. Ambos concordamos: ser chef está na moda. Cozinhar tornou-se cool. Ambos rimos. Ele, do âmago do seu bom fundo, expõe: "Há vantagens [nessa moda].
Mais investimento em restauração, mais conceitos, mais expressão criativa, a cozinha de autor… Por outro lado, é uma coisa que leva tempo. E eu acho que muita gente, por vezes, quer chegar ao fim sem passar pelas inúmeras experiências que nos formam. Há uma viagem que é preciso ser feita para se chegar ao topo. Se cortarmos essa viagem e se formos directamente do A para o Z, provavelmente o resultado não será tão bom. Experiências de vida são essenciais", instiga. "É uma profissão dura. É preciso muita sorte, muito tempo e muitos anos a trabalhar no duro. Cerca de 15, 16 anos, diariamente. É necessária perseverança e, claro está, imensa paixão." É verdade, caro leitor, já mencionei que Nuno Mendes é um apaixonado por tudo o que faz? E que só assim lhe faz sentido ser? É que estamos mesmo perante um Chef que não sabe trabalhar de outra forma, senão com alma e coração. Uma receita tantas vezes esquecida lá no alto dos grandes egos e cargos. Uma receita que, ao mesmo tempo e ao longo da História, revelou ser o segredo do real sucesso. De um sucesso que se sente, muito mais do que um sucesso que se vê nos números ou que se lê nos jornais. Um triunfo que é fruto da equação "Mais coração e menos razão". "A paixão pela cozinha existia [em mim] desde que eu me lembro, mas nessa época eu não via isso como profissão ou carreira". Efectivamente, os tempos eram outros: "A Cozinha ainda não era arte. Cozinhava-se para se comer e não era visível a criatividade possível por detrás de cada prato. Quando cozinhamos há uma transmissão. Quando alimentamos alguém passamos algo muito pessoal a outras pessoas. E eu sou apaixonado por essa transacção."
Afastado de Portugal há mais de duas décadas, este Cozinheiro português sempre foi um apaixonado por viagens. A paixão começa na infância quando, inspirado pelo explorador francês Jacques Cousteau, pondera a Biologia Marinha como profissão, parecendo-lhe o álibi perfeito para aquilo que queria fazer: correr mundo. Mas a vida tinha outros planos para Nuno Mendes e, felizmente, todos incluiriam o verbo Viajar. Com 23 anos de idade, voa até São Francisco para frequentar um curso de cozinha, algo que à data, em Portugal, ainda não existia. "Era um programa muito completo. Ao contrário dos cursos na Suíça que eram mais focados na hotelaria, neste estudava-se cozinha, mas também gestão e tudo o que envolve a arte da hospitalidade", explica. "A curiosidade pela Califórnia era algo que já vinha de trás. Era um antigo sonho meu. Juntar o útil ao agradável, ou seja, viver na Califórnia enquanto estudava o que gostava e fazia o que gostava… Pode-se dizer que os primeiros passos na minha carreira foram dados naquela escola. Foi uma fase muito emocionante." Quando termina a escola, entre 1996 e 1997, decide ficar na Califórnia a trabalhar por mais dois anos. "São Francisco é uma cidade muito interessante, bonita e com uma qualidade de vida muito gira. Gastronomicamente é diversa. Tem influências culturais enormes. Para se cozinhar é uma cidade fantástica, já que tem uma confluência de culturas colossal: do português ao coreano, passando pelo tailandês ou pelo vietnamita. E tem o México não muito longe. É uma cidade com um carácter muito europeu. Era um sítio onde eu gostava de estar, mas sabia que ainda tinha muito para viajar." Explica-me que o "bichinho" das viagens aliado à paixão pela Cozinha é algo que funciona muito bem em conjunto: "À medida que se vai viajando, vai-se aprendendo e estando exposto a diferentes culturas e tipos de gastronomia. Procurei sempre locais onde pudesse aprender." E cita alguns por onde passou: "Estados Unidos, Japão, Ásia, Novo México…" É evidente que considera ter sido crucial esta vida de viajante que, aliás, acabou por dar nome ao restaurante que lhe valeu uma estrela Michelin: o Viajante, em Londres. Mas já lá vamos. "Tenho cem por cento de certeza de que se não tivesse viajado, a minha visão não seria esta", confirma.
Conta que saiu fascinado da escola de São Francisco, mas que quando começou a trabalhar rapidamente se apercebeu que a escola era apenas o início de uma longa aprendizagem. "Após essa altura, eu mentalizei-me que não queria chegar à posição de estar à frente de um projecto, muito rapidamente. Tinha duas opções: ou fazia o fast track que era ser chef de cozinha e, dali a dois anos, começava a fazer os meus erros, as minhas asneiras ou continuava a aprender, a viajar e a altura certa haveria de chegar. E foi essa a decisão que eu tomei. Foi uma sentença muito importante, a de não me querer estabelecer em São Francisco. Muitos amigos, dois anos depois da escola, estavam a trabalhar como sub-chefs de restaurantes, o que é uma posição relativamente boa. Mas eu não quis fazer isso. Quis continuar a viajar e a aprender. E ainda andei 10 anos nisso. Financeiramente não me dava aquilo que me poderia dar uma posição de chef ou mesmo de sub-chef, mas deu-me mundo e experiência. Obrigou-me a estar fora da minha zona de conforto. Aprendi muito mais, garantidamente. E, certamente, emocionei-me muito mais." Lá está, Nuno Mendes é da emoção e não da razão. É claro que ao ser da emoção, a probabilidade de ganhar "cicatrizes" é muito maior do que se tivesse ficado no conforto da razão. "Todas essas ‘cicatrizes’ que eu trago comigo fazem de mim quem eu sou hoje. Portanto, eu considero que acabaram por ser positivas." Exacto.
Seguimos mentalmente até à Catalunha, onde nos sentamos à mesa do célebre El Bulli, conhecido por tantos como sendo "O melhor restaurante do mundo". "Foi uma experiência muito interessante. Quando eu lá cheguei já era muito mais velho do que a maioria da gente que lá estava. Tinha 30 anos e já tinha estado à frente de uma cozinha… [Na passagem pelo El Bulli] eu estava à procura de ver e de confirmar com os meus próprios olhos que era possível seguir-se os nosso sonhos e acreditar-se neles. E foi isso que trouxe de lá. É lógico que aprendi bastante no que respeita à técnica, mas o facto daqueles dois irmãos [Ferran e Albert Adrià] terem acreditado naquilo até ao fim… Isso foi o que me fascinou. Foi um trabalho de 12 anos em que eles nunca deixaram de acreditar! E o resultado é o que se vê." Volta a colocar paixão no topo dos ingredientes e isso leva-o até ao Viajante, o seu maior projecto em Londres: "Eu sempre quis fazer o meu restaurante com uma identidade própria e de preferência non commercial. E o Viajante acabou por ser o que melhor contava a minha história. Era um espaço que captava a energia daquela zona de Londres [Bethnal Green]: aspecto boémio, artístico, criativo… Com uma proposta gastronómica que emanava essa inspiração e onde eu pude contar o meu percurso, os sítios onde estive, as coisas que me tocaram… A minha visão era mais fun dining do que fine dining. Era muito menos formal do que aquilo que havia, na altura. Era muito emocional", esclarece. "Tenho o luxo de poder dizer que eu nunca pensei nos projectos com um fim financeiro. Com o Euro ao fundo do túnel. Acima de tudo, o meu pensamento sempre foi querer fazer coisas interessantes ‘e depois logo se vê’." E depois logo se vê… E viu-se. Viu-se, com certeza, na estrela Michelin que recebeu, em Janeiro de 2011, nove meses após a inauguração do Viajante: "No mesmo ano em que eu recebi a estrela nasceu a minha primeira filha [em Março] e em Junho morreram o meu pai e a minha avó. Foi um ano complexo e, no meio de tanta coisa, a estrela [Michelin] ficou perdida. De qualquer maneira, eu nunca trabalhei para ela. É como criar um projecto para ganhar dinheiro. Nunca pensei assim… O meu pensamento sempre foi: vamos expor uma ideia, um conceito e depois se o Michelin chegar e disser que Sim, óptimo. Também não sou daquelas pessoas que dizem que não querem [uma estrela]. Se vier, fantástico. Mas tento seguir a minha linha, acima de tudo."