Conversas

Nova autobiografia de Will Smith: "Queria ser o menino de ouro. O salvador da minha mãe. O usurpador do meu pai."

Revelamos um excerto da autobiografia "Will", em que o autor fala da relação com o pai, a primeira vez em que pensa em suicidar-se e também como se foi cada vez mais mascarando numa personagem, por causa do medo. Leia aqui.

Foto: Getty Images
09 de novembro de 2021 | Rita Silva Avelar
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A propósito do novo livro do ator Will Smith, uma autobiografia a que chamou de Will e onde fala sobre a sua carreira mas também sobre a sua vida privada, publicamos em exclusivo um excerto do terceiro capítulo, Desempenho.

"Os psicólogos defendem que o relacionamento com os nossos pais na infância e no início da adolescência cria o "mapa" a que recorremos para compreender o amor na idade adulta. Enquanto crianças, quando interagimos com os nossos pais, determinados comportamentos e atitudes fazem-nos sentir importantes e acarinhados, mas também existem comportamentos e atitudes que nos fazem sentir abandonados, inseguros e  negligenciados. Os comportamentos e as atitudes que nos transmitem carinho acabam por determinar a nossa definição de amor.


O Daddio gostava de me ver trabalhar com afinco e executar as suas ordens com intensidade e precisão. Ficou orgulhoso por me ter ensinado a disciplina de assentar um tijolo a seguir ao outro de forma a construir um muro perfeito. A Mom-Mom adorava que eu usasse o cérebro – ela aplaudia o pensador dentro de mim, quando a minha inteligência e o meu intelecto se destacavam.

A minha mãe é o meu protótipo: paciente, brilhante, formidável, carinhosa. Preferia fazer coisas connosco, mas ficava bem sozinha. Conseguia carregar o mundo às costas, se visse que precisávamos de uma pausa.

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Havia algo de majestoso e poderoso na forma como a Gigi me amava. Sempre que atuava para ela, sentia que estava ligado à Força, como se não pudesse falhar. Era o meu Sol. Se ao menos eu conseguisse fazer com que o mundo olhasse para mim como a Gigi olhou quando toquei o tema "Feelings", isso é que era. Seria a cereja no topo do bolo.

Os conceitos de amar e representar fundiram-se na minha mente. O amor passou a ser algo conquistado por dizer e fazer as coisas certas. Na minha cabeça, os bons desempenhos resultavam em amor; os maus desempenhos em solidão e abandono. Um bom desempenho era garantia de afeto. Mas se fosse mau, era solidão pela certa.

Representava para apaziguar o Daddio e reprimir o seu mau humor. Representava para distrair a minha família da crescente tensão e do ressentimento que nos consumia. Representava para que as crianças do meu bairro gostassem de mim. Como tal, comecei a encarar a felicidade, minha e dos meus entes queridos, como uma consequência da minha capacidade para entreter as pessoas. Se o meu desempenho fosse bom, estávamos todos seguros e felizes. Se o meu desempenho fosse mau, ficávamos em maus lençóis.

O meu pai era mais carinhoso quando estava atrás de uma objetiva ou de um projetor. Portanto, eu queria estar sempre à frente da sua câmara, e ele também queria que eu lá estivesse. Essas eram, durante a minha infância, as poucas vezes em que nos sentíamos em perfeita sintonia. Eu adorava participar nos filmes caseiros do meu pai. E isso aproximou-nos. Indiscutivelmente, a ânsia pelo seu amor e pela sua aprovação desempenhou um papel importante no meu desejo de vir a representar noutros filmes.

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A sensação agonizante de estar a falhar com as mulheres que amo é algo que me atormenta desde sempre. Ao longo dos anos, em todos os meus relacionamentos, sempre fiz demasiado. Mimei de mais, protegi de mais, sempre a tentar desesperadamente agradar, mesmo quando as pessoas estavam perfeitamente bem. Esse desejo insaciável de agradar manifestou-se como uma carência extremamente cansativa.

Para mim, o amor era mais uma das minhas atuações, logo, se não arrancasse aplausos, era sinal de que estava a falhar. Para se ser bem-sucedido no amor, aqueles que mais amamos têm de aplaudir constantemente. Spoiler alert: não é assim que se criam relacionamentos saudáveis.

Quando eu tinha 13 anos, o meu pai bateu na minha mãe pela última vez. Ela fartou-se. Foi trabalhar na manhã seguinte e não voltou para casa. Não estava muito longe, apenas a alguns quarteirões de distância, em casa da Gigi. Mas a mensagem foi clara: tinha chegado ao seu limite. Aquela foi a primeira de duas vezes na vida em que contemplei o suicídio. Pensei em comprimidos. Sabia onde um menino perdera as pernas num caminho de ferro. Tinha visto pessoas a cortarem os pulsos em banheiras, na televisão. Mas não conseguia deixar de ouvir a voz da Gigi a dizer que o suicídio era pecado.
Foto: Kyle Christy


O Daddio voltou a adotar todos os protocolos militares. Agora, era só ele no comando. No dia seguinte, acordou às quatro da manhã para preparar o pequeno-almoço. Estava decidido a mostrar que não precisávamos da Mom-Mom para nada.

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Por volta das cinco e meia, os pratos estavam na mesa: meia maçã, ovos estrelados e uma fatia de scrapple. Um jarro com sumo de laranja e outro com leite. A mãe nunca punha jarros em cima da mesa.

Às seis, a Ellen e eu estávamos sentados à mesa. O Harry sabia que tinha de estar na mesa àquela hora. Acho que descer às 6:04 foi o protesto silencioso do meu irmão. O Daddio deixou passar a infração, algo impensável, pois, normalmente, chegar às 6:04 significaria zero pequeno-almoço para o Harry. A comida estava no prato há trinta minutos, por isso, os ovos estavam frios e a meia maçã ganhara um tom acastanhado. A Ellen e eu comemos em silêncio.

– Os ovos estão duros – disse o Harry. O pai parecia não ter ouvido. Continuou a lavar a louça. Começar limpo e manter limpo era uma das máximas do Daddio, que tanto se aplicava à cozinha como ao trabalho. Ia limpando à medida que cozinhava, para não deixar uma grande bagunça no fim.
O Harry olhou para a comida e empinou o nariz.
– A maçã está toda castanha – disse.
Por favor, Harry, está calado…
– E o que é isto? – perguntou, empurrando o scrapple com a ponta do dedo.

Sem dizer uma palavra, o Daddio arrancou o Harry da cadeira, arrastou-o até à porta de casa, abriu-a e pô-lo lá fora. Em seguida, passou-lhe a mochila para as mãos e bateu a porta com força. Naquele dia, o Harry não voltou para casa depois das aulas. Foi para casa da Gigi, morar com a Mom-Mom.

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Para mim, a partida do Harry foi tão dolorosa como a da minha mãe. Também queria ir para junto dela, mas tinha medo. E isso só serviu para dar força à minha insegurança mais profunda. Não podia continuar a negar a verdade: era um cobarde.

A Mom-Mom viveu na casa da Gigi durante três anos. Víamo-la todos os dias. Trazia-nos o almoço e nós passávamos por casa da Gigi frequentemente, e, por vezes, dormíamos lá. As casas eram suficientemente próximas para conseguirmos manter uma proximidade aparente, mas, por dentro, a nossa família estava desfeita.

Foi por esta altura que comecei a procurar refúgio na televisão. Encontrava algum consolo nas famílias perfeitas das minhas séries favoritas: Happy Days, Good Times, The Brady Bunch, Laverne & Shirley, Mork & Mindy… e o Jack Tripper, da série cómica Um é Pouco, Dois é Bom e Três é de Mais eram a minha realidade. Idealizava as famílias que via na televisão. Todos faziam exatamente o que eu tentava fazer: quando surgia um problema, o Mr. Cunningham ficava furioso, o Ritchie assustado, as coisas azedavam durante algum tempo, mas depois o Fonz dizia uma palermice qualquer, dava um chuto na jukebox, e todos se riam e viviam felizes para sempre.

Sim. É isso mesmo. Não é assim tão difícil, pois não?!

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Queria ser o adolescente despreocupado que se dava sempre bem com os seus pais. Queria ter uma mãe e um pai que se amassem. Queria viver com duas raparigas bonitas e fugir às regras do Mr. Roper. No mínimo, achava que merecia ter a companhia de um extraterrestre peculiar vindo do planeta Ork que resolvesse todos os meus problemas.

Em vez disso, a minha vida era um caos.

No entanto, em criança, a minha maior obsessão era a série Dallas. Os Ewings eram uma família grande e rica do Texas, encabeçada por J.R., o patriarca obstinado. Liderava o clã Ewing da mesma forma que o Daddio liderava os Smiths. Só que o J.R. Ewing era extremamente rico. As pessoas dão-nos muito mais crédito quando vivemos numa casa com um nome. Isso surpreendeu-me. A casa dos Ewing tinha um nome! Southfork era um rancho com mais de 120 hectares no norte do Texas. Toda a família Ewing – irmãos, irmãs, pais, avós, sogros, tias, tios, sobrinhas, sobrinhos – vivia em Southfork. Eu queria que toda a minha família vivesse assim.

Jamais esquecerei a cena que mudou a minha vida. Em retrospetiva, foi apenas um momento sem importância: num habitual dia soalheiro no norte do Texas, a família Ewing estava reunida para a refeição familiar obrigatória no exterior da mansão palaciana, quando Sue Ellen, a esposa de J.R., aparece a cavalo para tomar o pequeno-almoço. A minha jovem mente nunca mais foi a mesma a partir daquele instante. Ela vinha a cavalo da sua casa até à casa de família, que ficava na mesma propriedade? Para mim, Southfork era o paraíso: uma propriedade onde todos viviam juntos e a minha mulher podia vir na porra do cavalo tomar o pequeno-almoço.

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Enquanto isso, no mundo real, fui enterrando o que considerava serem as minhas falhas sob camadas e mais camadas de representações. Adotei uma personalidade infatigavelmente alegre, otimista e positiva. Respondi à desarmonia do meu mundo com constância: estava sempre a sorrir, sempre divertido e pronto para desatar às gargalhadas. Está tudo bem no meu mundo.

Um dia, seria eu a mandar e tudo seria perfeito. Vou ter uma casa grande numa propriedade enorme e todos vamos morar juntos, e eu vou cuidar de toda a gente. Queria ser o menino de ouro. O salvador da minha mãe. O usurpador do meu pai. Esse ia ser o melhor papel da minha vida. E nos quarenta longos anos que se seguiram, nunca saí do personagem. Nem uma vez."
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