Conversas

Natasha Fink, a chef que deu a conhecer os sabores da Amazónia

Depois de uma carreira de sucesso Brasil, mudou-se há quatro anos para Cascais, onde abriu o Palaphita, situado numa falésia junto à Casa da Guia, e já este mês inaugurou uma loja delicatessen em São Pedro do Estoril.

Foto: DR
28 de agosto de 2024 | Miguel Judas
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É um dos locais mais em voga de Cascais e percebe-se bem porquê mal se entra neste estabelecimento totalmente ao ar livre, situado junto ao icónico Farol da Guia, numa falésia sobranceira ao mar. Um lugar perfeito para apreciar o pôr-do-sol, ao som de música ao vivo ou de um dj, a bebericar um cocktail, enquanto se ganha apetite para uma refeição mais substancial, entre as muitas propostas da carta do Palaphita, na qual predominam os sabores e ingredientes da Amazónia. O nome tem origem num dos sistemas de construção mais utilizados no rio Amazonas, sobre troncos ou pilares, ou seja, "versátil, adaptável e diferenciado", tal como este restaurante de "arquitetura efémera", que depois de uma história de sucesso no Rio de janeiro, sempre pela mão da chef e antiga jornalista Natasha Fink, chegou há cerca de quatro anos a Portugal – ao que tudo indica para ficar, como a própria assume nesta entrevista à Must, poucos dias de pois de ter inaugurado um segundo estabelecimento em São Pedro do Estoril.

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Como é que uma jornalista acaba por se tornar chef? 

É uma longa história, talvez tenha a ver com o facto de ter sido criada numa família que sempre deu muito importância ao ato de cozinhar e ao estar à volta de uma mesa. Cresci a dar muito valor essa cultura de partilhar a comida de várias maneiras, fazendo junto, comendo junto, levando-a para casa dos amigos e da família. Aprendi desde muito cedo que a mesa é um lugar importante de partilha. O meu pai trabalhava muito e os momentos de convivência com ele eram sempre à volta de comer ou beber alguma coisa. Portanto já era algo que estava em mim. Depois, já enquanto jornalista, trabalhei numa série documental, chamada Cenário Popular, sobre diversos aspetos da cultura da Amazónia, que abordavam tanto lendas e mitos, como arquitetura popular ou a gastronomia tradicional daquelas pessoas. E quando finalmente entrámos nessa temática, acabei por ser engolida por ela. Nessa altura, acreditava que conhecia muito bem a cultura amazónica, mas foi só através da comida que realmente comecei a perceber aqueles povos, pelos ingredientes que usavam, pelo modo como cozinhavam à beira do rio só com o que tinham à mão. Percebi que tudo era muito mais profundo que aquilo que supunha até então. Achei tudo tão importante que comecei a pensar também de forma mais profunda na cozinha dessa região, nos pratos que se confecionavam os pratos nas famílias mais abastadas, como a minha, e como estes se tinham afastado dessa raiz. E também de como tudo poderia ser muito mais sofisticado e elegante se recuperássemos essa tradição, em vez de andarmos sempre a imitar o que se faz na Europa.

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Mas quando é que começou, de facto, a dedicar-se à cozinha? 

Logo pouco tempo depois, primeiro como um hobby, porque tinha-me casado há pouco tempo e tinha uma casa ótima para receber pessoas e isso passou a ser um motivo para reunir os amigos à volta da mesa. Começaram cada vez mais a dizer-me que devia cozinhar profissionalmente. Ao início achava isso um absurdo (risos), mas a dada altura decidi iniciar um pequeno negócio com uma amiga e isso fez-me perceber que era mesmo o que queria fazer na vida. Era uma deli muito pequena, que durou pouco tempo, mas permitiu-me sonhar mais alto. Na altura percebi também que se queria mesmo seguir esse ramo teria de aprender mais sobre o mesmo. Comecei por trabalhar nalgumas empresas do setor, mais ou menos durante um ano, até que um dia decidi ir estudar para o Rio de Janeiro. Apesar de os meus filhos ainda serem pequenos, na altura já me tinha separado e era tempo de dar outra direção à minha vida. Pensava ficar só por alguns meses e depois ir estagiar e aprender para a Europa. Mas como os meus irmãos já tinha um projeto de restauração de sucesso no Rio, fui assim meio que abduzida e fiquei com eles. Entretanto abriu o primeiro curso superior de gastronomia no Rio e eu ingressei na universidade. Quando me formei, em 2002, abri o meu primeiro restaurante, que ao contrário do primeiro [teste] já foi um enorme sucesso. Depois em 2004 abri o o meu primeiro projeto autoral, com um cardápio criado por mim e que já trazia para o Rio os tais ingredientes da Amazónia. Foi uma total novidade, muito fora da caixa, porque ninguém conhecia. As pessoas gostaram, os jornalistas apareceram, tive uma visibilidade muito grande e seis meses depois estava a sair no New York Times. Foi tudo muito rápido e inesperado (risos), mas abriu-me as portas para sucesso do Palaphita do Rio de Janeiro. 

O que a fez então mudar-se para Portugal e abrir o Palaphita em Cascais?  

Tomei essa decisão durante a pandemia, que é a melhor das desculpas para tudo, mas o que me fez mesmo feito sair do Brasil foi o agravamento da sensação de violência no Rio de Janeiro, sentido especialmente entre 2016 e 2020. Tinha sofrido vários assaltos no restaurante e pensei que já estava na hora. Já tinha tido um convite para vir para cá e decidi fechar para vir totalmente livre e ver como corria. Inicialmente até vim como turista, mas pouco tempo depois decidi mesmo ficar e entretanto já se passaram quatro anos.

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E aqui o conceito também tem muito a ver com a Amazónia, certo? 

Sim, tem muito a ver com o que sempre fiz, porque sempre acreditei ser possível colocar os produtos da Amazónia na mesa, a dialogar com os ingredientes de qualquer lugar. Além disso, quando usamos um produto da floresta, também estamos a contribuir para manter essa mesma floresta. Esse sempre foi o meu pensamento inicial, porque ao usarmos um açaí ou uma castanha da Amazónia, estamos não só a contribuir para que esses produtos não desapareçam, como também a ajudar comunidades que vivem deles a terem mais meios de subsistência. Além disso, tratam-se de produtos cujo cultivo ou manejo implicam um enorme respeito pela biodiversidade da Amazónia. Encaro isso como uma grande missão do Palaphita, tal como fazer chegar esses pequenos produtores até à Europa, dando-lhe uma outra voz.

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Como é que os clientes reagiram a esses produtos aqui em Portugal? 

Essa é a questão mais difícil de responder, porque a nossa clientela é muito diversa. Temos os portugueses cascalenses, muito tradicionais e que no início eram muito reativos às nossas propostas, mas entretanto já estão mais acostumados (risos); temos também muitos turistas, pois Cascais é um destino também muito em voga, mas o nosso espaço não é perto nem é de passagem, pelo que as pessoas têm de se programar para vir cá e temos feito um grande trabalho de promoção nesse sentido; além disso, há um outro grupo que foi muito importante, especialmente no início, quando abrimos, o dos brasileiros. O Palaphita já era um nome conhecido no contexto do Rio de Janeiro e em Cascais vivem muitos cariocas, que encontraram aqui um polo de atração, por reunirmos algumas coisas muito importantes para os brasileiros, como o sol, o convívio ao ar livre, a proximidade do mar. E depois o próprio Palaphita tem um conceito muito abrangente, pode-se vir só tomar um vinho, um cocktail ou uma cerveja, temos uma cardápio muito eclético, com sanduiches, pratos [principais] ou petiscos. O que quer que se queira fazer ou consumir aqui, há sempre uma opção gastronómica condizente com os diferentes horários do dia, desde que abrimos, ao meio-dia, até encerrarmos à uma da manhã.

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Qual foi o maior choque que sentiu ao vir para Portugal? 

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O de sentir que nós, na Amazónia, somos muito mais portugueses do que imaginamos. Falo da Amazónia branca, claro, não da indígena. Ao chegar aqui reparei em pequenas coisas que sempre conheci em minha casa e na minha família. O meu pai era de origem portuguesa, mas já havia desconectado há muito com esse lado e creio que nem ele tinha noção dessa conexão. Até os nomes de cidades como Santarém, Óbidos ou Ourém, que também existem no interior da Amazónia. Já sabia disso, mas ver essas cidades aqui foi algo que mexeu muito comigo, com a minha raiz. Houve um momento da minha vida em que me quis sentir realmente do Amazonas, resgatar aquela coisa da tradição indígena e da raiz cultural, mas aqui percebi que tudo está muito mais ligado do que conseguimos imaginar e somos bastante mais parecidos do que supomos. 

Entretanto, este mês, abriu um novo Palaphita, em São Pedro do Estoril. Como é que vai ser este novo projeto? 

Vai ser uma delicatessen, mas com serviço de mesa. Costumamos dizer que se trata de uma loja-conceito, que reúne um pouco do estilo de vida Palaphita, com alguns produtos ligados ao mar e ao surf. No que à parte gastronómica diz respeito, tem um grande balcão, onde estarão disponíveis mais de 100 itens produzidos no próprio estabelecimento. Vamos ter produtos para levar, para consumir no estabelecimento, haverá uma ementa com todas as sugestões e combinações possíveis do que temos exposto no balcão. À exceção do presunto, iremos produzir toda a nossa charcutaria, gravalax, tataki de atum, pastrami, etc. Será talvez uma linha um pouco mais leve e saudável que em Cascais, mas tanto o espaço quanto a oferta gastronómica serão bastante inovadores e, parece-me, ainda pouco comuns em Portugal, pelo menos daquilo que conheço.  

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