Quando se partilha que está na agenda uma entrevista a Miguel Gameiro é intuitiva a resposta das outras pessoas com o refrão "Estou a aprender a ser feliz", um dos grandes sucessos do grupo Pólo Norte. A simpatia e a genuinidade de Miguel Gameiro fizeram do músico tornado chef uma figura querida do público nacional. Aos 45 anos e pai de um bebé de quatro meses, segue uma vida profissional entre a música e a gastronomia, e confessa-se realizado. Numa manhã chuvosa de novembro, Miguel Gameiro sentou-se à conversa com a Must e numa altura em que se prepara o Natal e se faz um balanço do ano que termina, antecipando-se um ano novo que aí vem, falámos de memórias, das muitas celebrações que se aproximam, de recomeços e de um percurso de vida com diferentes caminhos.
O público conhece o Miguel Gameiro através de diferentes facetas, como a música, a gastronomia, a televisão… Como é que se definiria?
O que me define talvez seja o desassossego que vem desde muito miúdo. Esta vontade de querer fazer coisas que me completem e que me tragam satisfação. Eu sou um privilegiado porque faço o que gosto. Corro atrás do que gosto. Corre-se muito! Dá trabalho e cansa-me, mas, no fim do dia, chegar a casa é muito bom…
Sente-se realizado?
Sim. Eu não podia sentir-me mais realizado do que me sinto agora. Não sou uma daquelas pessoas que estabelecem uma meta muito além daquilo que poderia ser possível. Eu creio que 25 anos só a viver da música neste país já é muito bom. A cozinha veio um pouco mais tarde. Depois, entrar no mundo da cozinha e na via profissional e também ter feito, ao longo deste processo, uma série de conhecimentos e de amizades são mais-valias pessoais muito grandes. O balanço é muito positivo.
Em criança, o que queria ser quando fosse grande?
Eu queria ser veterinário, o que não tem nada a ver com isto… Na altura, os miúdos queriam ser todos astronautas ou bombeiros e eu lembro-me que queria ser veterinário. E não era de consultório. Era de quinta, daqueles que andam com as galochas no meio do campo. Eu adorava andar com o meu pai, que era caçador, e sairmos cedíssimo de casa para ir ao Alentejo. Gostava de ir para o campo e do cheiro do campo. E tinha um trato com o meu pai em que tudo aquilo em que ele acertasse e não matasse, eu tentaria salvar. Mas posso dizer que nunca fui bem-sucedido na minha tarefa... Esta era a minha paixão de infância. Depois, na adolescência, mudou. Pedi ao meu pai que me arranjasse uma guitarra para eu tocar e aí mudou tudo. Comecei a tocar e a escrever.
Foi um processo autodidata?
Sim. Entretanto, não consegui ir estudar medicina veterinária por causa das notas. A Matemática sempre foi uma arqui-inimiga minha, mas em línguas sempre fui um bom aluno. Não me limitei a pegar na guitarra. Apreendi os acordes e fui logo escrever. É claro que aprendi a tocar as músicas dos GNR, dos Xutos & Pontapés e dos Sétima Legião para poder tocar nos bares [com o grupo]. Estes eram a nossa porta de entrada e, a seguir, tocávamos sempre temas originais, aos quais ninguém ligava nenhuma. Fazia parte da história de uma banda passar pelos bares. É importante para um grupo e para um músico, assim como é importante para um cozinheiro passar por estágios profissionais em diferentes cozinhas e pelos postos todos na cozinha.
Quando é que percebeu que era uma carreira na música que queria seguir na sua vida?
Eu percebi isso quando comecei a sentir que tinha algum jeito para aquilo que estava a fazer. Quando comecei a escrever coisas com sentido e com as quais as outras pessoas se identificavam. Porque a família concorda sempre e acha tudo bonito.
A sua família apoiou-o sempre nesta escolha?
Sim, apoiou sempre. Mas houve uma primeira grande desilusão. Quando terminei o 12.º ano, estava pronto para estudar Comunicação Social e concorri a três universidades. Mas costumo contar esta história. A minha mãe estava em casa e eu disse-lhe: "Mãe, tenho duas notícias para te dar, uma boa e uma má. A má é que não entrei em universidade nenhuma e a boa é que vou gravar um disco." E ela respondeu-me: "Repete lá a boa." Depois perceberam que era a sério porque, além de gravar um disco, também iria ter concertos.
Era muito jovem quando gravou esse primeiro disco…
Sim. Eu tinha 17 ou 18 anos. Depois [os meus pais] seguiram-me para todo o lado enquanto puderam. Uns pais excecionais. Eles são de uma geração, que já não é a nossa geração, em que o que nós queremos é que os nossos filhos sejam felizes. Naquela altura ainda havia o pensamento de que o curso superior era importante para se ter segurança. As coisas, hoje, são diferentes, mas eu acho que o importante é que, no fim do dia, os filhos sejam felizes. Um tenho um filho com quatro meses.
Em 2020, os Pólo Norte celebram 25 de história e foi recentemente anunciada uma reunião do grupo. Como surgiu esta ideia?
Nós já tínhamos feito duas celebrações, uma em 2015 e uma em 2010. Achei que, agora, faria todo o sentido voltarmos a juntar-nos e a tocar porque as pessoas gostam e têm boa memória do grupo e eu acredito que marcou, de alguma maneira, a música portuguesa nos anos 90. Decidimos juntar-nos e fazer uma tournée que durará apenas um ano. Não há disco novo, nem canções novas. Vamos fazer uma regravação do Lisboa, que foi o primeiro single [do grupo]. Hoje, até nos concertos a solo, é uma das canções que as pessoas se lembram mais e até as novas gerações que não são do tempo do grupo, mas cujos pais ouvem a música. Eu gosto de celebrar.
Destes 25 anos de carreira que memórias, boas e más, ficam de uma vida ligada à música?
Não há memórias más. Há memórias difíceis. Nos primeiros concertos andávamos com dois jipes UMM. Éramos um grupo "todo-o-terreno"! Porque, na altura, um dos fundadores do grupo, o António Villas Boas, tinha uma quinta, onde nós ensaiávamos, e dois jipes para se deslocar nela e era nesses jipes com capota de lona que nós íamos para a estrada. Nós íamos num e o material ia noutro. E havia sempre muitas aventuras. [Naquela altura] os concertos eram difíceis porque as pessoas não conheciam [o grupo]. No início é sempre difícil. Recordo a vez em que tocámos em Castelo de Paiva, na discoteca Autarquia, que era onde tocavam as principais bandas portuguesas. Não era o Coliseu [dos Recreios] ou a Altice Arena, mas era uma sala que vivia muito da sua mística. Todos os grupos queriam lá ir tocar porque todos os grupos já lá tinham passado e esse nosso concerto era muito difícil, mas foi importante passar por aí. Foi importante passar por palcos sem condições algumas. Hoje vejo malta mais nova que salta do anonimato para os grandes festivais.
É importante fazer esse percurso todo?
Quando se puder saltar esse percurso e se conseguir ser bom músico na mesma, não é necessário. Eu creio que foi importante para a união do grupo e para a nossa perceção enquanto pessoas das dificuldades que é necessário passar. Falo das nossas, mas há os UHF ou os Xutos & Pontapés que têm memórias mais complicadas… Para chegar a Bragança para dar um concerto, por exemplo, demorava-se o dia inteiro… E eles têm uma música sobre isso mesmo. Todas essas dificuldades acabam por trazer alguma riqueza e, mais que não seja, histórias para contar numa entrevista! Eu lembro-me que fizemos uma primeira parte de um concerto dos UHF, em Almada, no segundo ano do grupo, e estávamos eufóricos. Na altura chegámos ao sítio do espetáculo sem as credenciais. Ninguém se lembrou, não sabíamos o que era isso e nunca tínhamos estado num espetáculo assim tão grande. O guarda pediu-nos a identificação e nós mostrámos os bilhetes de identidade, mas é claro que ele queira as credenciais. Na altura andávamos com todo o merchandising: cassetes, posters na nossa [Renault] Traffic – na altura já andávamos de Traffic como profissionais! Fomos buscar um poster que desenrolámos à frente do guarda e dissemos-lhe: "Nós somos estes!" E ele respondeu: "Posters todos temos!" Partimo-nos a rir com a resposta dele e tivemos de esperar que nos viessem buscar…
Eu tenho a ideia de que é uma pessoa muito querida pelo público, além do seu papel de músico e de vocalista dos Pólo Norte. Que feedback tem tido do público, ao longo do tempo?
Eu tenho tido bom feedback! Tenho a sensação que as pessoas têm algum carinho por mim, mas tem que ver com a minha maneira de estar na vida. Eu não desempenho um papel quando estou em palco. Aquilo que sou na música é o que eu sou como pessoa. Aquilo que eu escrevo é aquilo que eu presencio. Nos meus concertos eu estou no meio do público e sempre tentei eliminar a barreira entre mim e o público. Quando encerrámos a tournée acústica deste [mais recente] álbum, na Póvoa de Varzim, com uma sala esgotada, vi um comentário no Facebook de alguém que dizia: "Nos concertos do Miguel parece que nós estamos na nossa casa e parece que ele está a cantar na nossa sala de estar." E é isso que eu quero: quebrar essa barreira. Às vezes tenho de ter cuidado e não quebrá-la demais porque tem de haver rigor. Eu já estive em Hollywood e é lá que estão as "estrelas".
Gosta de viajar?
Viajar inspira-me muito. Eu gosto de ver realidades distintas, pessoas, comportamentos. Gosto de ir aos sítios que não são os turísticos e inspiro-me porque saio do meu quotidiano. Muitas vezes, dou por mim a cantarolar nessas viagens e é assim que as músicas me aparecem.
O que o faz escrever, o que o inspira?
A vida. Pessoas, lugares, situações que vejo e que não esqueço. A parte musical surge muito na viagem e registo [isso] no telefone…
Onde e quando é que a cozinha entra?
As pessoas, hoje em dia, perguntam-me se eu sou cozinheiro, agora, porque a música já não dá. Nós conseguimos fazer mais do que uma coisa. Foi por gosto que eu comecei essa atividade. Sempre gostei de ver a minha avó e a minha mãe a cozinhar e sempre gostei de cozinhar também. Nós ajudávamos na cozinha, o meu irmão nos bolos e eu mais na parte dos salgados. Adoramos o Natal que é passado na cozinha. Foi a minha avó que me ensinou a fazer as filhoses e eu ainda tenho a forma que ela usava. A cozinha acabou por tomar conta de mim. Eu dava por mim a ler muito sobre o tema e pensei que isso estava a ganhar grandes proporções e que teria de ir fazer formação. E assim foi. Fui para a Escola de Hotelaria do Estoril, durante um ano, e depois fiz um estágio com o Rui Paula, no meio do verão e dos concertos.
A dita cozinha acompanhou a sua carreira de músico?
Sim. O "pessoal" apanhava-me no restaurante e seguíamos para o concerto quando os concertos eram no Norte. Depois, fiz outros estágios profissionais e fui para Paris para a escola do Alain Ducasse, durante três meses. Queria ter uma formação que fosse um reforço da formação que fiz aqui [em Portugal] e queria que fosse de excelência. Uma das minhas opções era o Culinary Institute of America, em Napa Valley, uma zona incrível de restauração e de vinhos. A escola é lindíssima e parece o castelo de Hogwarts, do Harry Potter, tem uma biblioteca enorme, produzem vinho e tem a escola de enologia… A segunda opção era o Instituto Basco de Culinária, onde estão os maiores cozinheiros bascos a dar formação. É uma escola muito recente. Deve ter 10 anos de existência… E depois havia a escola do Ducasse, a clássica escola francesa. Acabei por ficar em Paris e escolhi a escola clássica porque a minha abordagem à cozinha também é muito clássica e gosto muito do que é a cozinha tradicional. Também gosto do desafio criativo de transformar um prato, mas para se conseguir fazer isso tem de se conhecer as raízes e as bases da cozinha tradicional. O que eu noto, hoje em dia, e que já notava na escola, é que nos miúdos ? porque eles a mim tratavam-me por senhor porque eu era muito mais velho – havia essa necessidade dos empratamentos e da estética e não havia a vontade da busca da raiz. Primeiro tem de se ler o livro da Maria de Lourdes Modesto, A Cozinha Tradicional Portuguesa [edição de autor], que é um dos meus manuais escolares, cheio de apontamentos e de post-it. São essas raízes que são a nossa identidade e quando nos distanciamos disso começamos a fazer o que os outros fazem em todo o lado.
O que lhe fica na memória do tempo passado em Paris?
Eu estive lá três meses. Entrávamos [na escola] às oito e meia para fazer um briefing e para tomar o pequeno-almoço e saíamos às sete da tarde. Era um dia inteiro de culinária. Depois tínhamos muito trabalho para fazer fora da escola, mas era a parte mais teórica. Normalmente, eu saía às sete ou sete e meia, passava por uma padaria que estaria a fazer pão nessa altura, comprava uma baguete, recheava-a com queijo e com fiambre, via um episódio de Walking Dead, estudava e ia dormir. Na escola tínhamos várias visitas a queijarias, a mercados… E havia pessoas de todo o mundo.
Sentiu vontade de ficar lá?
A minha ligação ao meu país e à minha família é muito grande. Mas eu tive vontade de continuar [em Paris]. Estamos a falar de uma capital gastronómica muito forte. Qualquer cantinho em Paris, qualquer pequeno bistrô, serve uma comida extraordinária porque há o oculto da comida e do produto.
O que fez com essa formação quando regressou a Portugal?
[Enquanto estive em Paris] vinha a Portugal fazer concertos porque não poderia estar três meses sem trabalhar. Foi muito cansativo, mas foi muito bom, e foi de uma grande riqueza pessoal. Depois voltei e fui fazer um estágio com o Miguel Laffan, no L’AND Vineyards Resort. Seguiram-se convites em diferentes sítios para cozinhar. Depois tive um restaurante, na Quinta da Beloura, que não correu bem por variadas razões. A seguir mudei-me para o Casino Estoril e, por outras razões, também não funcionou. E como eu sou muito teimoso e obstinado, estou, neste momento, a mudar-me para perto da Gare do Oriente, onde estou a criar um novo projeto. É um restaurante que já existe e eu criei uma parceria com uma pessoa que vem da indústria farmacêutica e que se lançou na cozinha.
Quando será a abertura desse espaço?
Em janeiro arrancamos em força.
A solidariedade tem um papel importante na sua vida. Sente que deve retribuir o que a sociedade lhe dá?
Para mim, a vida como a conhecemos não pode ser apenas os nossos objetivos: família, trabalho e a nossa diversão… Se nós existimos como comunidade, tem de haver algo mais do que isso. E fazer algo mais é cooperar. Tem de haver ajuda e apoio. É ridículo se a nossa vida for só trabalhar, criar os filhos e divertirmo-nos. É pouco. A vida pode-nos completar e enriquecer. Todas as experiências de solidariedade em que estive envolvido podem trazer riqueza porque contactarmos com outras realidades deixa-nos mais ricos. E, no fundo, não deixa de ser um exercício egoísta porque é para nos sentirmos bem e para sentirmos que ajudamos os outros.
Essas atividades não fazem parte da sua faceta pública...
E eu faço questão que assim seja. Quando me fazem um convite e me dizem que irá estar presente a imprensa, eu digo logo que não irei... Eu tive uns anos em que ia ao IPO para estar com crianças e era um processo difícil. A primeira vez foi difícil. Uma pessoa sai de lá derrotada, mas ao mesmo tempo com esperança. Eu vou lá cantar e é uma festa. Fiz uma participação de Natal na Comunidade Vida e Paz. Fiz um trabalho de fim de curso na Escola de Hotelaria e aproveitei o facto de conhecer muitas pessoas para as convidar a ir fazer palestras na escola e demonstrações culinárias. Mas o projeto ganhou proporções tão grandes que tínhamos alunos do país inteiro a assistir. Depois fomos para o Casino Estoril e fizemos um concerto solidário. Os chefs estavam na cozinha a cozinhar com os meus colegas e na sala os meus colegas de sala estavam a ajudar o pessoal de sala. Foi uma forma que encontrei de pôr os alunos a trabalhar com os profissionais que os motivam. Na altura em que fui ao Casino Estoril apresentar esse projeto, um dos diretores achou que isso era uma grande loucura e, quando o concretizei, lembro-me de estar nas escadas do Salão Preto e Prata, com os sapatos tirados, e de ele ter-me dito que foi um dos eventos mais bonitos que o Casino já fez. E isso deixou-me muito feliz…
Eu tenho de acabar esta entrevista a perguntar-lhe se continua "a aprender a ser feliz"?
Eu sabia que ia fazer essa pergunta! Continuo. Todos os dias.