Conversas

Matt Preston: “A cozinha portuguesa apaixona-me”

Em entrevista à MUST a propósito do seu novo livro, o crítico e jornalista gastronómico recorda os prazeres que viveu em Portugal, e como criou receitas que giram em torno de vegetais, pondo os seus amigos à prova.

27 de maio de 2021 | Rita Silva Avelar
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Uma autoridade na cozinha australiana, e um dos rostos mais simpáticos (e também críticos) do Masterchef Austrália, Matt Preston dispensa apresentações. Sorridente e bem-disposto, e sempre (sempre) bem-vestido, fala-nos de Melbourne com um cenário floral como plano de fundo, o que ainda o torna mais afável. Separam-nos nove horas segundo o fuso horário, mas o apetite é o mesmo - seja às 9h da manhã ou às seis da tarde, em Portugal e na Austrália respetivamente, damos por nós a discutir tranquilamente como confecionamos favas.

Depois, surge a vontade de esmiuçar as receitas do seu mais recente livro "Mais - Mais receitas com mais vegetais para mais alegria" (editado pela casa das Letras), todas em torno das leguminosas.

Assim, e ao longo desta entrevista, as respostas atropelam-se com receitas e formas infinitas de cozinhar determinado ingrediente, com menções da cozinha "pandémica" pelo meio. É o que acontece com os foodies, como se apelida Matt Preston. "Sou obcecado com comida", diz-nos, algumas vezes, ao longo desta conversa. Não prometemos que o leitor não termine de ler sem ficar a salivar, até porque basta nomear algumas das receitas do livro: risoto cremoso de alho francês e abóbora, bifes de couve-flor com húmus vermelho ou strogonoff de cogumelos com noodles de salsa. 

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Tenho a edição portuguesa do Mais nas mãos. É tão bonita quanto esperava?

Estou super entusiasmado para ver a edição portuguesa. E estava mesmo agora a pensar que há muito tempo que não faço a salada de couve roxa [do meu livro]. Como jornalistas, temos tendência a apaixonar-nos pela novidade, pelo que é recente. Mas há tantas coisas simples e boas.

Esquecemo-nos de regressar aos básicos…

E na verdade, é tudo sobre o "brilho da prata" e não sobre "o valor do ouro".

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Esteve em Portugal há uns anos. Encontrou alguma inspiração nos pratos portugueses para estas receitas?

Eu acredito que uma boa parte da cozinha portuguesa é construída em torno da pastelaria, da carne, e sim, também dos vegetais. Quando estive em Portugal comi peixe no Algarve, porco em Beja, e bacalhau em Lisboa. Algumas dessas influências estão nas receitas do meu próximo livro (camarão ou pastéis de nata, por exemplo). No caso deste livro, foi escrito seis meses antes de ir a Portugal. É preciso esperar pelo próximo para ver a influência portuguesa. Se pesquisar Matt Preston em Portugal no Google, verá exemplos péssimos de mim a tentar interpretar os sabores e os ingredientes dos pratos portugueses (risos).

No Sul, chegou a provar alguns vegetais?

Em Beja, provei migas de espargos. Adoro açorda. Comi no D.Dinis, e em mais dois sítios, todos antigos e tradicionais.

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Lembra-se de todos os sítios onde comeu até hoje?

Sim - e é embaraçoso. Eu tenho memória fotográfica, não para pessoas, mas para pratos e sítios. Eu conseguia fechar os olhos e fazer-lhe uma visita guiada pelo D. Dinis agora mesmo. Entramos, temos o bar à direita, iríamos para a sala do fundo, de telha, sentávamo-nos à mesa. Eu gostava de ter um superpoder mais valioso, como tornar-me invisível, ou lembrar-me de guiões dos recitais de Shakespeare, mas eu tenho mesmo uma obsessão nerd por comida (risos).

É um superpoder.

É uma grande mais-valia no meu trabalho, sobretudo quanto aos sabores e às texturas. Quando regressei de Portugal, e me pus a relembrar tudo, fui capaz de captar esses detalhes todos: como as migas do D. Dinis estavam tostadas sem estarem queimadas, mas sim douradas nos cantos, por exemplo. Tenho sorte. Mas digo-lhe: também me lembro dos pratos terríveis que provo. E isso não é assim tão agradável (risos).

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Voltando aos vegetais: é incrível a quantidade de comida que se pode confecionar em torno dos mesmos. Foi isso que quis provar com este livro?

Com toda a certeza. Na Austrália, de segunda a sábado os vegetais são cozidos, e aos domingos são assados para acompanhar a carne. Tenho ascendência inglesa, e também era assim. Nunca vaporizamos, fritamos, ou transformamos os vegetais em pickles. E há ou não há uma infinidade de coisas que se pode fazer com couve-flor? Desde levá-la ao forno e regar com azeite, a recheá-la com queijo, tornando-a cremosa por dentro e crepitante por fora. Eu acho que tomámos os vegetais por garantidos durante muito tempo, e ficamos presos à ideia de que a cozinha vegetariana é só lentilhas. E há tanto prazer e alegria que pode vir de uma coisa tão simples como uma couve. Cada vegetal pode ser uma pequena excitação. Assim como falamos de comer um animal da cabeça à cauda (algo que até está muito próximo do coração da cozinha portuguesa), também pode ser assim com os vegetais. Quando faço puré de batata, guardo as cascas da batata e deixo-as em infusão dentro do leite para que deem mais sabor ao puré e tornam-no mais cremoso. São pequenos truques, ajudam-nos a evitar o desperdício e a maximizar o sabor.

Por falar em cremoso. A visão é a maior aliada do paladar?

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Absolutamente, e trouxe à conversa um ponto muito importante. Normalmente, e historicamente, os vegetais são usados de forma muito simples, como acompanhamentos. Automaticamente, isso remete os vegetais para um papel secundário, tornando-os uma espécie de coprotagonistas. Se pegarmos no exemplo da minha receita de couve flor assada com azeite e cominhos (servida com amêndoas, iogurte e tahini, groselhas e pistácios, mergulhada em cherry ou vinho do Porto), olhamos para o prato e é uma explosão de cores, há muito a acontecer, e os nossos olhos dizem à nossa boca que será crocante, cremoso, salgado… E assim saberemos que não vai ser apenas mais um prato aborrecido de couve-flor no forno.

Em Portugal, no confinamento, as pessoas voltaram-se para as suas cozinhas. Aconteceu o mesmo na Austrália?

Adorava saber como foi a experiência em Portugal. Na Austrália, as pessoas cozinharam muito mais, sim, mas como se sentiam assustadas voltaram-se para a comida "tranquilizante". Voltaram ao pão, aos bolos, aos hidratos, como as massas e o arroz. Tornaram-se muito mais predominantes na nossa alimentação do que há dois anos, quando a Austrália seguia uma rota muito mais portuguesa, a dar lugar ao peixe e às saladas. De certa forma, tornou-nos muito retro. Procurámos conforto, tranquilidade, e as pessoas ganharam skills que provavelmente também foram resgatar ao passado. Além de cozinharem mais, não fiquei com a sensação de que os australianos ficassem mais destemidos na cozinha. Acho que não pensaram: "vamos experimentar coisas mesmo doidas." Isso não.

Como prevê o regresso aos restaurantes?

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Eu estou fascinado para perceber, agora que estamos a sair da pandemia e a voltar aos restaurantes, quais os sítios onde vamos querer ir. Será que queremos voltar à comida de conforto? Ou queremos agora experimentar coisas novas e improváveis? As minhas primeiras experiências, quando os nossos restaurantes começaram a abrir, passaram por ir a lugares onde se cozinha comida que eu não cozinhava em casa. Ir a um restaurante étnico provar comida da Etiópia, ou a um sítio que faz a melhor kombucha. Sabia que não queria ir a sítios com lasanha. Porque comi imensa lasanha (risos).

Que receita salva-vidas escolheria do seu livro, para cozinhar em 15 minutos?

Um prato simples, que nem leva vegetais. Esparguete com manteiga, leite em pó, pimenta preta e avelãs. Há sempre o pão de queijo, se eu estiver deprimido, se estivesse de coração partido, provavelmente comeria isso. Também há o húmus de batata doce fumada ou o pissaladiere de pimento encarnado, azeitonas pretas e cebola caramelizada.

Como foi testando as receitas?

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Depende. Algumas testei com amigos obcecados com carne, que nunca perceberam que não estavam a comer carne. O maior teste do livro, aliás, foi convidar uma amiga vegetariana que é casada com um desses amigos obcecados por carne. E ele nunca notou que estava a comer vegetais. O que é incrível. A ideia, com estas receitas, é que os sabores estejam de certa forma invertidos, tenham um boost, fossem doces ou salgados. Paprika fumada para fazer lembrar bacon, barbecue, ou chili, por exemplo. E juntar crocante com cremoso, com texturizado, faz com que nem tenhamos tempo para pensar no que é que estamos a comer. Numa escala maior, na Austrália, tal como em Portugal, antigamente adorávamoss a carne acima de todas as coisas. Acho que isso está a mudar, e que estamos mais próximos da gastronomia portuguesa onde o peixe e os vegetais têm lugar de destaque. É algo que me apaixona na cozinha portuguesa. Arroz de tamboril é tão "limpo", tão puro. Em Espanha estaria cozinhado numa paella, e em Itália num risoto.

Também entra aqui a importância da sustentabilidade, como já mencionou. Estamos mais predispostos a "reciclar" os vegetais? Transformar abóboras que sobraram num puré?

Sabe, eu ainda fico surpreendido quando as pessoas me perguntam como se faz sopa. Basta usar uma varinha mágica, fazer "zzzzt" e temos um puré. Junta-se-lhe manteiga e temos um molho cremoso. É um pouco como as fórmulas de como transformar gás, líquidos ou sólidos. Porque não havemos de assar cenouras para chili, e  juntá-las também ao nosso arroz frito, que por sua vez pode acompanhar também outro prato, como calamares? Precisamos de celebrar mais os vegetais.

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Um livro que celebra os vegetais surpreendeu os amigos mais próximos?

Sim e não. Na Austrália antiga, os homens estariam no barbecue e as mulheres na cozinha a fazer as saladas. Este é o retrato misógino do barbecue australiano, historicamente falando. Eu sempre estive mais interessado em fazer saladas. Sim, a carne é ótima, mas basta virá-la no fogareiro. As saladas são um mix de coisas, é um excitamento. Damos-lhe cremosidade? Um efeito crocante? Há possibilidades infinitas. Por um lado, sim, tive amigos surpreendidos, mas sabem todos que eu adoro os meus vegetais. Antes de escrever este livro, passei três meses a cumprir a dieta paleolítica, e outros três a comer uma dieta vegan. Isso desconcertou-os, a um certo nível. Isso explica porque não há muito óleo de coco neste livro, porque eu usei quantidades insanas durantes esses seis meses. Para os amigos que acreditam que os vegetais devem ser um acompanhamento, ofereci-lhes uma secção de carne no fim do livro (risos). Se ficarem nervosos ao ver muitos vegetais, podem passar as páginas e ir até lá.

Mas caminhamos para "os verdes", de maneira geral. Concorda?

Tem tudo a ver com a direção que estamos a tomar. Sustentavelmente, ecologicamente, financeiramente. E os vegetais estão finalmente a tornar-se os protagonistas. Adoro a ideia de que os cogumelos e os tomates possam ser os heróis do prato, com um peito de frango como acompanhamento.

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Termino com uma provocação. Em Portugal temos a tendência para falar de comida, enquanto comemos. Sentiu isso quando cá esteve?

Sim, são obcecados por comida. Mas essa não é a normalidade? Quando cheguei à Austrália, foi-me dito que Melbourne era a cidade dos três milhões de críticos gastronómicos. É ir a um restaurante, comer, e pensarmos onde se vai comer a seguir. Porque a comida é tão central… Na Austrália é igual. E há outra coisa curiosa: não é a comida dos restaurantes fancy que deixa as pessoas ensandecidas, é onde irão comer o melhor bacalhau. Ou o que se deve comer quando se está em Coimbra. Ou a que padaria devemos ir no Porto. É esse nível de conhecimento e de troca de conversas sobre gastronomia, que para mim é muito tranquilizante e entusiasmante. Quando estamos à mesa, temos de nos lembrar mais vezes de viver o momento, estar presente. E não há nada de errado em se ficar mesmo feliz com o prato que se tem à frente, ou ficar com água na boca a pensar no prato que vem a seguir.

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