Decidiu ficar no Douro, mas nasceu longe.
Nasci em Nampula. O meu pai tinha desistido de Portugal. Chateou-se com a família, foi para Moçambique e conheceu lá a minha mãe. Os meus avós maternos estavam lá há um bom par de anos e tinham lá umas machambas (terrenos agrícolas) e um restaurante em Moçambique.
Os avós paternos eram do Douro?
A família do meu pai é genuinamente duriense há várias gerações. O meu tio bisavô é um dos fundadores da organização do Douro: Antão Fernandes de Carvalho. Foi ministro da agricultura, presidente da câmara da Régua e um grande advogado. Está na origem da constituição dos estatutos e criação da Casa do Douro. O resto da família eram grandes proprietários da região com várias quintas. O meu pai foi sempre a ovelha negra da família como eu também gosto de ser.
Quando voltaram, acabaram por ir parar ao Douro?
Cresci em Vila Seca de Poiares onde o Antão de Carvalho nasceu e onde existem grandes ligações da infância do meu pai. Era uma casa modesta que que ele comprou com sacrifício e onde vivemos toda a vida.
Depois da escola, foi para o seminário?
Fui seminarista salesiano durante dois anos. Os Salesianos são muito fortes em Poiares e era para onde ia toda a gente das aldeias, mas era externo. Por questões económicas fui para uma escola agrícola na Régua onde estive interno durante seis anos e fiz um curso técnico-profissional de agricultura e pecuária.
A universidade a seguir?
Não me consegui inscrever logo na universidade e fiz o meu estágio da escola profissional na Casa do Douro, na Régua, onde fiquei a trabalhar. Ao fim de um ano como estagiário ingressei nos quadros e fui para o laboratório de análises físico-químicas aos vinhos.
E o vinho?
Em 1991 começo a ganhar o gosto pelo vinho, pelas provas. Já tinha feito a minha primeira vindima profissional em 89 na Adega Cooperativa de Foz Coa requisitado à Casa do Douro junto com engenheiros da casa. E, a partir daí, as vindimas nunca mais pararam até hoje. Até 1992 estive muito ligado às cooperativas, Foz Coa, Penajoia, Vila Real. Morava na aldeia e trabalhava na Régua. Muitas das vezes à boleia ou de bicicleta no Verão. Sempre gostei da aventura e de não ter a comodidade de um carro.
Mas o vinho não era a sua maior paixão.
A grande paixão era o desporto-aventura. Cerca de 60% do meu tempo era pensar no desporto-aventura e em maluquices. Os outros 40 do tempo útil era a pensar nos vinhos.
Era o que hoje se chamam desportos radicais?
Sempre gostei da adrenalina. Quando estava na Casa do Douro tive que ir à tropa, fui incorporado em Mafra, mas detestei tanto o mosteiro que acabei por ir para os Rangers de Lamego fazer o curso de operações especiais.
Foi duro?
Foi uma tropa horrível e, ao mesmo tempo, fantástica. Estava a gostar daquela adrenalina toda. Fui o segundo melhor classificado do meu curso e fiquei a dar formação aos mais novos. Aquilo para mim foi um ano de desporto-aventura.
Mas antes já descia os rios…
Estava no clube de caça e pesca da Régua na secção de canoagem. Dedicava-me à disciplina de caiaque em águas bravas, descer em rápidos, slalom, e acabei por levar essa prática para a tropa fora do calendário militar. O que é certo é que passados dois ou três anos o caiaque foi introduzido no curso de operações especiais porque era um meio de fazer a abordagem ao inimigo o mais silenciosamente possível.
Era quase profissional?
Vivi intensamente o desporto, disputei vários campeonatos nacionais de águas bravas, slalom e estive na seleção nacional. Cheguei a tentar os mínimos para os Jogos Olímpicos do Barcelona.
E a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)?
Fui para Vila Real para o curso de Enologia, estive três anos a estudar e a trabalhar, mas não terminei. Era trabalhador-estudante e havia muito trabalho nas cooperativas e comecei a fazer parte da câmara de provas na Casa do Douro. Além das análises físico-químicas, estava no departamento de cromatografia e na câmara de provadores. Era confusão demais para mim terminar o curso.
Avançou mais a sério para os vinhos?
Continuei na Casa do Douro e, paralelamente, a atividade de consultoria. Comecei a sair e a visitar outros produtores em Espanha com amigos e acabava por vir de lá um pouco deprimido porque havia uma diferença abismal entre as condições de trabalho, as vinhas e as adegas e a realidade que existia cá. Uma das adegas que mais me marcou foi a Vega Sicília. Há quase há 30 anos um autêntico luxo e uma qualidade impressionante.
Sempre a trabalhar para outros?
Até 98, a data que marcou um projeto pessoal, nunca me passou pela cabeça entrar num negócio. Trabalhava em vários sítios 18 horas por dia e posso dizer que era muito bem remunerado. Acabei por trilhar e criar um caminho que me tornou uma pessoa calma, totalmente independente.
Ainda antes esteve em dois grandes projetos.
Foi dos anos mais marcantes da minha vida no mundo dos vinhos. Entrei como consultor e ainda hoje as mantenho: a Quinta Seara D'Ordens e a Quinta do Infantado. Já conseguia dominar por completo todo o processo de um produtor desde a vindima até prateleira.
E finalmente lançou um projeto pessoal?
Numa brincadeira com o João Roseira, um dos sócios da Quinta do Infantado e mais três amigos, criamos o primeiro projeto de vinhos que hoje, já sem eles, ainda se chama Bago de Touriga. Eu na enologia, o João na vertente comercial, o Zé Roseira como relações-públicas e o Mário Cardoso um dos melhores viticulturistas do Douro.
Mas já tinha vinho seu.
Por conta e risco tinha, desde 96, duas colheitas em armazém. Já no projeto saiu o Gouvyas reserva 1996 produzido em São João da Pesqueira com as castas tradicionais. Foi o que me deu impulso e visibilidade no país porque num concurso que houve na Casa do Douro levei quatro vinhos que tínhamos na empresa e ganhei quatro medalhas de ouro.
Foi quando apareceu nos jornais?
O Diário de Notícias fez um artigo a 1 de janeiro de 2000 que me colocou em destaque como enólogo para o século. Sempre detestei exposição, sempre gostei de estar no "back office" para poder fazer asneiras.
Foi um começo em grande?
Foi fantástico. Não digo em termos económicos porque o setor dos vinhos para pequenos nunca foi bom, mas criou vontade de querer ainda fazer mais, de arriscar, para nos divertirmos que foi sempre o meu grande propósito. Ganhámos dinheiro, mas foi sempre investido para comprar mais e melhores barricas.
Entretanto tinha saído da Casa do Douro em 2000…
Andava numa disputa com a direção porque não era remunerado pelas funções que tinha. Finalmente, quando vi reconhecida a minha luta e o meu vencimento duplicou, apresentei a minha carta de demissão. Foi o grito do Ipiranga. Ia ser totalmente independente sem ter um vínculo laboral com ninguém. Era consultor com o meu recibo verde. E mais nada.
Além da Bago de Touriga, criou outra empresa?
Uma microempresa, Colheita de Ideias, com mais dois amigos: o Francisco Ferreira da Quinta do Valado e o Rui Moreira. Fizemos o Kolheita 2001 que chegou a ser considerado na revista de vinhos como um Bordéus dos mais finos que existe feito no Douro. Acabou por ter que fechar em 2009 por causa de um distribuidor que nos ficou a dever uma fortuna.
Sempre houve gosto pelas vinhas velhas?
Produzem pouco, mas aquilo que dão é ouro. São diamantes em bruto que é preciso sabermos trabalhar na adega, ou seja, não estragar para termos vinhos fantásticos. Posso dizer que essa é a raiz do meu sucesso relativamente à qualidade dos vinhos que foram para o mercado. Visitava produtores e estava na disposição de pagar um valor alto para não deitarem as vinhas abaixo. Mas acabei por perder a totalidade das vinhas velhas que trabalhava nessa altura.
Nunca quis vinhas próprias?
Não gosto de estar afeto a um só sítio, a uma só matriz. Isto era o que eu pensava há 20 e tal anos e mantive essa política de comprar as uvas de uma vinha que me desse um clique quando eu passasse por ali ou quando as visitasse. Nunca quis ter vinhas próprias, porque eu considero o Douro, no seu todo, como a minha vinha.
Como lhe dava esse clique?
Era o contrário do que as pessoas procuravam. Uma vinha muito débil, muito fraca, em stress, com videiras bastante velhas e com muito pouca produção. E muito bem localizada. Era isso que procurava na altura e que se conseguia encontrar. Na adega é ter o máximo de higiene e atuar o mínimo possível.
Foi assim que nasceram os seus vinhos?
Foram dois vinhos míticos na minha carreira: o Gouvyas e o Kolheita.
E voltou a criar uma empresa, no início só sua.
Em 2004 criei a minha empresa chamada Luís Soares Duarte Vinhos com a filosofia de sempre: procurar as vinhas velhas. Fui à procura de novos produtores. Fiz o primeiro vinho em 2004 com a marca Momentos. Em 2006, senti que sozinho ia ser muito difícil e comecei a desenhar um projeto para abrir a empresa a sócios e investidores, mas o processo acabou por correr muito mal.
Conhece a sua mulher em 2007…
Esse 2007, além de ser fantástico para os Portos Vintage, foi o ano que marca a minha vida para sempre. Ambos fizemos uma brincadeira de um vinho em comum. Em 2009 constituí, já com a minha mulher Joana, a empresa que temos hoje e que está agora a lançar vinhos. Todas as marcas que criei, registei sempre em meu nome. Gouvyas, Momentos, Pragmático, Telúrico, Kolheita, ao todo cerca de quinze marcas. É o legado para esta nova fase.
Já tinha lançado vinhos inovadores.
No meu pequeno percurso posso dizer que tenho alguns vinhos que na região do Douro saíram pela primeira vez. O primeiro curtimenta branco que saiu para o mercado certificado pelo IVDP, feito em 2010, mas que só saiu para o mercado em 2016. Um Touriga Fêmea e um Tinta Francisca num registo que não existia no Douro. Vinhos muito frescos com um tanino muito bem presente muito abertos de cor, mas com grande longevidade.
Não se ficou por aí…
Também estou na origem dos primeiros vinhos de curtimentas com flor. Ainda fiz um Moscatel Galego Branco com 11 graus e uma acidez cortante desta casta que considero a melhor do Douro. É multifacetada e se for bem feita dá vinhos fantásticos.
Nunca trabalhou fora. Porquê?
O Douro tinha tudo por fazer. Descobri tanta coisa boa nesta região que estava cristalizada. Vou conseguindo fazer no Douro essas outras regiões, esses outros vinhos do Pico, da Madeira… Com a Joana estamos a estagiar vinhos de mesa brancos feitos em curtimenta como se fazem os finos em Xerês, que para mim são os melhores aperitivos do mundo. Se eu posso fazê-los cá, não vou queimar energias nem perder tempo para fazê-los lá. Conheço os vinhos de norte a sul do país e de várias zonas do mundo e a minha pica é fazê-los no Douro. Acabo por influenciar uma série de amigos meus a fazer os vinhos que eles também gostam que nunca fizeram porque estão de tal forma na agitação do trabalho que não param para pensar no que gostam. É aí que eu perco mais tempo.
Mas há viabilidade económica nesse caminho?
Se calhar não, mas os outros grandes projetos também andam presos com pinças, com dependências enormes de financiamento, duma máquina que gera margens muito pequenas e que anda em carrossel. Quase em autofagia. Eu tenho liberdade. Esta atividade dá-nos tudo, a independência, a liberdade e o prazer. Eu e a Joana vivemos felizes porque nos habituamos a viver cada vez com menos.
Mas continuam a trabalhar noutros projetos.
Continuo a ter consultorias que que me permitem viver e a Joana trabalha na empresa que foi da família. Vive no Douro, mas trabalha no Alentejo e vai lá dois ou três dias por semana. Como nos habituámos a viver com o mínimo, as ambições são muito relativas e simples tal como comprar uma planta que custa 50 cêntimos que meto na terra e vai dar uma coisa que sonhei. É essa a energia que nós vamos buscar. Da simplicidade de absorver o máximo. Pode parecer muito filosófico, mas é uma realidade. Tornamo-nos muito minimalistas e vamos buscar muita energia às coisas básicas que a natureza nos está a dar.
Viver devagar?
Totalmente. Eu pasto e dedico-me à agricultura com este novo estilo de vida que criámos de 2018 quando decidimos investir nesse neste novo projeto que temos. Viver devagar e todos os dias me disciplino nesse sentido.
O que é que está a construir?
Acima de tudo estou a construir felicidade. A minha e da Joana. Fizemos um armazém, uma coisa básica. Devagarinho estamos a regenerar uma zona que estava totalmente deserta, abandonada, que é o Alto da Serra, a aldeia onde nós investimos a energia e é onde nós temos como dádiva mais energia para viver.
Ainda moram em Vila Real?
Ainda moramos, mas vamos querer ir viver para o Alto da Serra. Vamos fazer eco-construções em contentores marítimos. Já temos lá onze dos maiores e, devagar, fazer uma casa que será aberta a toda a gente. Já estamos a fazer uma sala de provas e uma cozinha e, a seguir, queremos fazer micro casas com um quarto, sala e casa de banho. Um ecoturismo ligado à agricultura, à vivência com os animais, à paisagem.
Enquadra-se na vida mais devagar?
Assusto-me um pouco porque faço a analogia dos últimos 20 anos que foi uma loucura, mas um flash. Os próximos 20 quero vivê-los muito mais devagar e muito melhor. E é o Alto da Serra que nos vai albergar. Estava totalmente abandonado e quase estéril, mas estou a regenerar o solo. Aprendi agricultura e aprendi a lidar com animais.
Que animais têm?
Queremos ao máximo valorizar os produtos portugueses por isso decidimos dedicar-nos a três tipos de raças autóctones. Somos criadores de cão de gado transmontano, de galinhas portuguesas, a preta lusitânica, a amarela e a pedrês. E temos uma raça de ovelhas rara em Portugal que está em vias de extinção que é a churra badana. Aprendi a lidar com as ovelhas, a fazer o maneio e é tudo feito por mim. Isto não gera riqueza monetária, gera valor para o nosso ecoprojeto através da biodiversidade de plantas, insetos, rastejantes e animais.
E os vossos vinhos?
Vão sair este ano, mas não sabemos quando porque isto está caótico por causa da falta de vidro, mas serão os primeiros vinhos do nosso projeto individual.
Então estão decididos?
A marca Pragmático para os vinhos minimalistas. Um Moscatel Galego sem sulfuroso, um vinho totalmente natural e um palhete. Vão sair três vinhos com a marca Telúrico: um Viosinho que a seguir ao Moscatel é a variedade que mais adoro, que esteve quatro anos em cuba e que está há dois em garrafa. Depois vai sair um branco que não vai ter a designação, mas que para nós é um branco reserva de 2016 que estagiou quatro anos em barrica e dois anos em garrafa. E vamos lançar um tinto de 2015. Este é o nosso propósito: fazer vinhos com largos anos de estágio antes de saírem para o mercado. Nos portos mantém-se o vintage com a marca Soares Duarte. E ainda temos uma série de vinhos em estágio.
Por exemplo?
Estamos a fazer moscatéis licorosos desde 2011 que, em média, vão envelhecer entre dez a 12 anos em madeira e depois dois anos em garrafões de trinta litros. Todos os anos vão ser quinhentas garrafas desses vinhos que são o meu estilo inspirado nos vinhos da Madeira e que, em princípio, sairão com a marca Telúrico.
A força do Douro?
Tem tudo a ver com Miguel Torga. É uma inspiração de força cá dentro, de rusticidade, de dureza, de dificuldade de transpor.