A vida do presidente da Picowines deu muitas voltas antes de se dedicar aos vinhos e à cooperativa. Onde cresceu?
Sou natural do Pico da Freguesia da Candelária. Os meus pais são de lá, os meus avós também, portanto, toda a minha a minha rede familiar. Cresci na Candelária, onde os meus avós eram viticultores tal como os meus bisavós até com alguma relevância ao nível das áreas e do pessoal. Não só na viticultura como também nas figueiras para a produção aguardente de figo que sempre foi, à parte do vinho, fonte de rendimento familiar.
Muitos anos antes de ter nascido?
Nasci em 1975, os meus avós eram de 1913 e 1917 e os bisavós do sec. XIX. Dividiram as propriedades pelos filhos e, algumas delas, aos poucos, fui conseguindo unificar comprando aos diferentes herdeiros. Consegui juntar grande parte daquilo que era o património dos meus dois bisavós.
Morava na Candelária?
Morava numa casa na freguesia, mas as adegas dos meus bisavós eram fora e ainda permanecem, infelizmente, um pouco arruinadas, mas carregadas de história e de histórias. Casas que conto a breve, médio prazo, recuperar. Uma delas é a casa de Manuel de Arriaga no Pico.
Há uma polémica com o nascimento do primeiro Presidente da República…
Não se sabe bem se nasceu no Pico ou Faial, mas a família estava lá nas férias e os pais passavam lá todos os verões. Ele nasceu em julho, portanto há quem diga que nasceu lá porque estavam a passar férias. Era redutor e menor nascer no Pico e então registaram-no no Faial com a data de 8 de julho.
Depois o seu bisavô comprou-a?
Foi adquirida pelo meu bisavô em 1930 e foi o centro de produção de aguardentes e de vinhos. Está um pouco arruinada, mas as paredes estão de pé e o soalho ainda é o mesmo.
A vinha e aguardente era a atividade principal?
Esta ligação à vinha e às figueiras, apesar do meu pai ter tido uma vida profissional ligada ao setor público, manteve-se sempre como part-time e em algumas das propriedades que herdou fez disso uma segunda atividade económica como o faziam os seus pais. A minha mãe foi sempre doméstica apoiando-o nessas e outras atividades. Aqui no Pico é comum as pessoas quererem outras atividades além da sua principal. Seja vinhas, figueiras, leite de vaca ou carne.
Conseguiu comprar que área?
É a partir das vinhas que o meu pai herdou e algumas que comprou que comecei a adquirir outras parcelas em volta e noutras zonas, algumas abandonadas. Fui recuperando hectare a hectare e nos últimos dez anos já consegui reconverter uma área de aproximadamente 30 hectares.
Onde fez a escola primária? Que tipo de atividades tinha?
A primária na Candelária, mas o secundário na Horta. Hoje, trabalhar antes dos 18 anos é crime, mas na altura era obrigatório. A partir de tenra idade comecei a andar nas vinhas e a aprender a fazer alguma coisa dentro das minhas capacidades físicas.
Tinha uma ideia do que é que gostaria de vir a ser no futuro? Planeou isso ou as coisas foram acontecendo?
As coisas foram acontecendo, mas adquirir território sempre me deu muito prazer. A primeira vinha que comprei no início de 90 ainda lá está. Foram 100 contos (500 euros) que ganhei nas férias. Inconscientemente talvez, mas pelo satisfação que me dava comprar parcelas à volta, fui adquirindo património e agora tornou-se muito mais fácil passados estes anos todos.
A certa altura foi para a universidade em Aveiro…
Estive em Aveiro em Engenharia Industrial e regressei ao Pico em 2007. Quando estava na universidade o meu pai sustentava-me duas vezes: o estudo na cidade e este vício de comprar mais um bocadinho de terra. Mais 100 contos, mais 150, mais 200. Quando acabei a faculdade tinha uma dívida de alguns milhares de contos, mas uma foi uma boa altura para comprar.
Esteve quase a ficar em Aveiro?
É uma cidade giríssima e vivia lá perfeitamente. Estava no centro da cidade estive lá a trabalhar quatro anos e tal. Até já estava a equacionar comprar uma casa em São Jacinto para atravessar a ria ao fim-de-semana. Mas o meu projeto de futuro sempre foi no Pico. Podia ter ficado lá mais dois ou três anos, mas acabaria sempre por vir para cá.
Porque regressou em 2007?
Tive um convite para uma empresa da mesma área em que estava a trabalhar. Entendi que estava na hora de avançar por conta e risco e, a par disso, estavam as vinhas que o meu pai trabalhava e as propriedades que tinham sido adquiridas e estavam abandonadas. Então trabalhava ao fim-de-semana com o meu pai e com mais um homem ou outro e mantínhamos aquilo. Trabalhando como diretor executivo da empresa mantinha este part-time ao fim-de-semana e era uma boa terapia.
Comercializava algum desse vinho?
Não. Depositava as uvas na cooperativa onde era e sou sócio. Aliás, sou presidente do conselho de administração da cooperativa porque eleição é entre os pares. Vou no segundo mandato, mas sou sócio desde 1996. O pouco vinho que se fazia em casa era para consumo ou para festas familiares.
Entretanto o mercado foi-se alterando.
Já com a Comissão de Viticultura da Região dos Açores havia algum nível de exigência. Foi sempre aumentando e, nos últimos dez anos, há um ponto de viragem que é a classificação de Património Mundial da UNESCO em 2004.
Mas não é toda a Ilha do Pico.
As áreas abrangidas vão ser revistas em 2024 e espero que se corrijam alguns erros. Há zonas que não se compreende porque é que ficaram de fora.
Saiu da empresa e criou uma sua?
Criei uma empresa na área da bricolage, construção e jardim e outra na área da viticultura onde desenvolvi alguns projetos no âmbito do programa Vitis na reconversão das zonas que estavam em produção, mas com castas americanas, que era uma grande parte das áreas que eu tinha adquirido. E plantar as castas nobres.
Mas porque se arrancava as vinhas americanas?
Eram castas muitas vezes não autorizadas pela União Europeia. Quando iniciei este projeto com a criação da Vulcanic Wines, mais de 80% eram as castas americanas. Não tinham grande valor comercial, requeriam poucos tratamentos, mas o vinho era muito pouco valorizado.
Foi por isso que as vinhas foram abandonadas?
Foi sendo difícil suportar os encargos de exploração com a rentabilidade. Nos anos 80 entrou-se num declínio que não tinha retorno senão voltando às castas tradicionais e trabalhando com qualidade, com adegas bem equipadas, com novos conhecedores das especificidades da região e foi isso que se fez. No caso da cooperativa Picowines, desde 94.
O que se fazia com essas castas? Vinho de cheiro?
Praticamente só. A casta Isabela dava um vinho mais comercial e mais bebível, mas feito com adição de aguardente já depois da fermentação porque são castas com teor alcoólico muito baixo. Foi criada uma exceção na legislação para os Açores tendo em conta a importância económica que tinha principalmente para a Ilha do Pico, que ainda se mantém apesar de já se ter arrancado seguramente mais de 90% destas áreas.
Através do programa Vitis?
Sim. A reconversão das áreas em produção ou abandonadas. Mesmo zonas que não produziam, desde que se provasse que tinham videiras, aceitavam a candidatura. Agora as regras alteraram-se um pouco. Espero que se volte à inicial, porque se não se puder desmatar as áreas que havia para reconverter pouco mais há a fazer.
O Losménio estava a viver no Pico ou na Horta?
Tenho casa nas duas ilhas. Circulo no canal de três a quatro vezes por semana. Fico no Pico quando preciso e no Faial onde tenho os meus filhos, portanto, preferencialmente no Faial.
Os dias são muito diferentes?
Quase sempre. Tenho cinco filhos, e no período letivo, faço questão de os levar à escola. Depois vou ao Pico normalmente na lancha das dez e venho no final do dia. Passo forçosamente pela cooperativa porque há sempre alguma decisão a tomar ou documentação para assinar. Nos dias em que não vou ao Pico fico pela sede da empresa que, no fundo, ajuda a financiar a outra dos vinhos porque a viticultura com projetos novos, fracas produções, só com os subsídios, é difícil de se suportar.
Ainda é confrontado com a "velha" rivalidade entre Pico e Horta?
Pensei que a minha geração ia acabar com essa rivalidade. O contexto histórico em que existe já tinha acabado há séculos. Tinha muito a ver com o facto das grandes propriedades do Pico no século XVIII e XIX e antes, serem de gente do Faial que recorria, no Pico, à figura do feitor. Recrutavam os picarotos para trabalhar as suas propriedades na altura em que o negócio do vinho estava no auge. Chegava a todos os cantos do mundo, muitas vezes exportado como vinho do Faial e os senhores ficavam com os louros. Tinham as grandes propriedades e casas solarengas.
Casas como a de Manuel de Arriaga?
Além dessa tenho outra que foi do visconde Leite Perry. São próximas uma da outra, mas eram duas casas com grande atividade económica nessa altura.
Era uma época próspera, mas para os do Faial…
Por exemplo, Manuel Inácio de Sousa, que construiu um palacete com o dinheiro da exportação do vinho a partir do Faial onde havia um porto acostável com condições para navios de algum porte. No tempo da guerra os alemães, franceses e os ingleses construíram aqui grandes colónias. O Faial com bastante dinâmica e o Pico relegado para a sua pobreza, miséria e fome. Essa raiva vem muito daí e foi passando de geração em geração. Agora o Pico está com uma dinâmica interessante com esta reviravolta das vinhas voltarem passarem a ser negócio.
Já sem os faialenses?
Depois da devastação da filoxera as grandes propriedades foram fracionadas em talhões e quem as trabalhava pode comprar alguma área. O território do Pico voltou à mão dos picarotos. Todavia, há 20 anos para cá que muitos consideram que o negócio é vender a vinha com valores que nunca pensaram. Houve um vizinho que vendeu uma parcela a um casal de americanos que pagou um preço completamente fora do mercado.
Mas o vinho não se faz sozinho…
É importantíssimo manter-se os apoios à manutenção dos currais e as compensações pela perda de produção. É uma viticultura muito onerosa, trabalhosa, muito difícil, porque requer trabalho manual e pouca mecanização.
Olha-se para as paisagens e não se percebe como nasce uma vinha neste terreno vulcânico. Como é possível?
Foi preciso cortar os lagidos com cunhas e com as poucas ferramentas que possuíam. E trazer terra para conseguir que a planta começasse a vingar. Depois, ela própria vai buscar ao subsolo os nutrientes para se manter. Na zona da Criação Velha é muito curioso porque as raízes das plantas vão a grande profundidade numa fenda de uma rocha. Não parece possível uma planta estar viçosa, verde, instalada numa fenda numa rocha feita com uma cunha, mas está lá. A pedra preta absorve muito calor durante o dia e fica a irradiar durante a noite, o que faz com que atinjam grandes graduações e teores de açúcar.
Houve que trocasse terra do Faial por madeira do pico?
Toda esta fronteira aqui da Candelária tem solos muito pobres onde não se conseguia cultivar nada. A comunicação mais fácil era o barco, daí recorrer-se ao Faial que é abundante em terras e boas pastagens. Algumas pessoas do Pico que tinham terrenos no Faial as rendas eram pagas em sacos de milho. A ilha tem algumas terras de qualidade na zona das Lages do Pico, mas Candelária fica a mais de 30 quilómetros, por isso era muito mais prático e funcional trazer a terra em batelões do Faial para o Pico. Era mais fácil atravessar o canal, do que atravessar a ilha. Esta história de séculos passou por fases muito difíceis.
Como correu e corre a reconversão das vinhas?
Nestas reconversões que fomos fazendo, abrimos caminhos de pequena dimensão para ter o mínimo impacto na paisagem. São para facilitar o transporte do pessoal, das uvas para que o pequeno trator ou a pequena pickup consiga penetrar neste enredo de corrais. Só para recuperar alguns currais com muros caídos gasta-se um dinheirão.
Quando reconverteram as vinhas escolheram sobretudo três castas. Eram as consideradas autóctones?
Foram estudadas e percebeu-se que o Terrantez do Pico e o Arinto dos Açores não existem mais de lado nenhum. Ao longo dos anos sofreram algumas mutações genéticas que as tornam diferentes de todas as outras como por exemplo serem "lavadas" com água salgada quase semanalmente. O Verdelho deriva do Verdelho nacional, mas há plantas com mais de 100 anos principalmente na zona da Criação Velha.
Um dos vinhos que a Picowines lançou é uma homenagem à cultura dos picarotos, o Rola-Pipa. Qual é a história?
Não havia portos acostáveis nem vias de comunicação. As pessoas circulavam de freguesia em freguesia pela costa por cima dos lagidos. As barricas eram roladas para o mar e rebocadas por pequenas embarcações a remos até aos navios de maior porte que estavam mais longe. Depois, içavam as barricas e levavam-nas para o porto da Horta para serem reagrupadas e daí para a exportação. Era tudo muito difícil. Se agora ainda é difícil nessa altura nem se fala. As pessoas auto-escravizavam-se.
Como surgiu a presidência da Picowines?
Sou sócio desde o 1996 e em 2016 havia eleições. Percebi que a adega tinha de dar um salto qualitativo nos vinhos e alargar o portefólio, a internacionalização e dinamizar o enoturismo. Fomos reunindo a equipa que não teve oposição e a partir daí traçámos linhas estratégicas como um novo enólogo e a rutura com o que estava. O caminho não podia ser o que estava a ser seguido principalmente nos últimos dois anos e pensei num enólogo de referência, jovem, que gostasse do Pico e facilmente chegámos ao Bernardo Cabral.
Está quase desde o início do seu mandato?
O Bernardo entrou uns meses depois de tomarmos posse e definimos a internacionalização como importantíssimo para a dinamização e valorização das uvas. Para podermos pagar as uvas o melhor possível tínhamos de vender o vinho tanto melhor quanto possível ou ao melhor preço. Muita gente se queixou do aumento substancial dos preços dos vinhos principalmente o Terra de Lava e o Frei Gigante. Diziam que estavam a preços proibitivos, mas alguns eram os mesmos que queriam receber as uvas a três e a quatro euros o quilo, como pagámos o ano passado. Não se pode vender vinhos baratos quando as uvas custam quatro euros o quilo.
Correu bem a internacionalização?
Neste momento estamos a exportar para 16 países. Em 2016 a comparativa tinha faturado dois mil e poucos euros fora do território regional e nacional. Era importante marcar uma presença forte no continente e agora temos uma cadeia de distribuição e logística montada para fazer contratos com cadeias de distribuição para diversificar os canais de venda.
Na exportação, estamos a falar de mercados da saudade?
Estes vinhos brancos de qualidade não se destinam aos mercados da saudade. São novos mercados como o Reino Unido, Alemanha, Suíça, Holanda, Bélgica, Singapura, Canadá, Estados Unidos e o Brasil que ainda está numa fase embrionária. O mercado da saudade vai muito para o vinho cheiro que nos Estados Unidos é permitido.
Os últimos anos não foram famosos na produção…
Os três últimos anos foram maus. Os nossos sócios produziram muito pouco. De 600 toneladas em 2019, que foi o melhor ano dos últimos 15, para em 2020 recebermos 340 toneladas e, em 2021, 230 toneladas. No ano passado entregaram à Picowines 126 toneladas. E ainda assim a Picowines recebeu mais de 50% das uvas produzidas no Pico. Porém, em 2022 batemos o recorde de vendas com praticamente dois milhões de euros e com um valor médio da garrafa o mais alto de sempre.
A produção desanima os produtores?
Vejo muitas pessoas a desanimar pelas fracas produções. Os apoios são bons, mas era importante serem ainda melhores. Vejo muita viticultura com grandes áreas, mas muito mal trabalhadas e a receber o mesmo tipo de apoio de quem faz um investimento e as mantém nas devidas condições. É uma reivindicação da junto da Secretaria Regional para a importância da fiscalização de quem recebeu apoios e assumiu contratos de manutenção. Não é preciso mais dinheiro, era só distribuí-lo por aqueles que efetivamente estão a fazer o trabalho em condições, em vez de o atribuir simplesmente pelas áreas e sem fiscalização.
É o seu último ano de mandato. Vai recandidatar-se?
Ainda não falámos entre nós. É um projeto muito desafiante e interessante para participar ativamente, mas ainda há muito a fazer. Há um projeto agora de um novo layout para a cooperativa que vai reposicionar toda a dinâmica no interior da adega. Temos um projeto feito no âmbito do PRR que contempla caixilharia, telhado, retirada de fibrocimento e, e a ser aprovado, vamos ter oportunidade de dar um salto qualitativo enorme quer nas condições de laboração quer nas condições de a apresentar para quem nos visita.