Em março de 2013, o chef Kiko Martins abria o seu primeiro espaço de restauração em Lisboa. N’O Talho (R. Carlos Testa 1B) mostrou que a carne pode ser comida com um prazer e sofisticação diferentes, se tratadas com esmero e método. Além de se manter uma butcher shop alternativa ao tradicional, com carnes diferentes e combinações inusitadas, O Talho celebra 10 anos com um menu especial e várias iniciativas. O chef tem ainda A Cevicheria (Princípe Real) tem O Poke (El Corte Inglés), O Boteco (Chiado) e Las Dos Manos (Alcântara), espaços que foi abrindo ao longo dos anos e que bebem da gastronomia do mundo – foi aliás, depois de visitar 26 países numa viagem, que teve a certeza que queria abrir um restaurante.
Antes do frenesim do almoço, sentámo-nos com o chef para conversar sobre balanços e desafios, mas também sobre os prazeres de se estar à mesa.
São 10 anos de Talho. Como se faz esse balanço?
Até parecem ser mais do que 10 anos. Como a vida num restaurante é tão intensa, entre almoços e jantares, aberto todos os dias, e como sofreu tantas alterações, 10 anos traduzem pouco a história deste restaurante. Como foi o primeiro restaurante que eu montei depois da viagem "Comer o Mundo" – na altura fui eu e os meus sócios a colar os azulejos na parede, a encontrar o chão, a encontrar as máquinas de corte… A nossa grande aposta sempre foi dinamizar e tentar reformular este espaço ao longo do tempo. A loja e o restaurante estão completamente diferentes.
Quantos são agora?
Eramos menos, agora somos 30, mas na verdade o staff sempre foi grande, tanto na butcher shop como no restaurante. Mas crescemos muito, ao fim de 10 anos continuamos cheios todos os dias, ao almoço e ao jantar. Foi uma fórmula de sucesso, e é frequentado por muitos portugueses, o que não deixa de ser engraçado! A maioria dos clientes são portugueses. Isto é mais do que um restaurante, é um sítio onde se trabalha a carne, onde se tenta inovar, onde fazer bem apenas não chega, temos produtores muito diferentes. Ainda hoje estou a testar pratos diferentes. É giro ver como num espaço tão pequeno foi ganhando glamour, identidade e personalidade. É uma alegria enorme poder ver isto acontecer. Ganhámos consistência, ao nível das carnes é uma referência.
Há 10 anos não havia este culto de comer carne com tanta elegância?
Eu sempre tentei arriscar. Mesmo a própria Cevicheria foi a pés juntos, o Asiático, o Boteco, o novo mexicano… Não havia uma cultura [em Portugal] de uma butcher shop bem trabalhada. Isto não é um restaurante onde se vem comer um bife com batatas fritas. Há carnes maravilhosas do Uruguai, da Argentina, de Espanha, do Norte de Portugal, a carne é sempre protagonista ao lado da cozinha de autor.
Depois de ter feito essa viagem de 26 países, a vontade até poderia ser a de fazer uma coisa mais exótica…
E era, eu queria fazer um restaurante pequenino de 12 lugares. Mas estávamos no pico da crise, e por isso a ideia foi tentar revolucionar um mercado que eu sentia que estava um bocado estagnado. Não havia glamour nem carinho a trabalhar a carne. Aqui, podemos comprar uns hambúrgueres de vitela barrosã, podemos comprar um peito de frango recheado com mozzarella e bacon, um rolo de carne com presunto pata negra…Podemos comprar um bife Wellington com foie gras. A qualidade é o mais importante, é ter todos os dias o pé no acelerador, acreditar que podemos fazer coisas novas, que podemos inovar.
É importante melhorar mesmo quando já se tem tudo afinado?
Eu estou sempre a querer melhorar no bom e no mau. O bom pode ser melhor.
Quais foram os pratos que nunca saíram da carta, em 10 anos?
Croquetes de cozido à portuguesa, bife tártaro e borrego tandoori.
E qual foi o prato mais "fora" que já serviu aqui?
Tivémos vários tipos de foie gras, asiático, do Médio Oriente, um prato de que eu gostava muito mas que não era consensual, o magret de pato asiático com 8 tipos de ervas aromáticas diferentes, com um molho feito à base de peixe, era um prato vietnamita. Na verdade, todos os pratos têm apontamentos de coisas que são originais. Também nunca tive a ambição de fazer uma coisa totalmente fora.
Como sente que evoluiu como chef?
A nível de conhecimento da carne, recebendo as várias carnes, desmanchá-las, perceber os vários cortes possíveis. Perceber a maturação das carnes, as diferenças dos processos, a temperatura, que fornecedores escolher, como garantir qualidade e consistência… Se tivermos a vontade de crescer e de inovar, a evolução é natural.
Ser chef não foi a sua primeira escolha profissional.
Eu tinha facilidade na cozinha, mas na minha família ser cozinheiro não era uma escolha óbvia, apesar de a minha mãe cozinhar muito bem. Foi uma coisa que foi surgindo de forma natural, percebi que não queria seguir Marketing nem Gestão, apesar de mais tarde me ter sido útil.
A viagem foi determinante?
Nunca mais deixei de ter esta paixão.
O desgaste e o cansaço é o lado B desta profissão?
O desgaste é grande, é cansativo, dorme-se pouco e trabalha-se muito, mas é compensado quando vemos as pessoas a gostarem daquilo que nós fazemos. Ver o restaurante a encher-se de pessoas… Os clientes a aparecerem e a voltarem, a dar feedback. Depois, tenho pessoas a trabalhar comigo há 10 anos.
Aprende-se muito a observar as pessoas?
Muito. Com os pratos a chegar à copa…Ao pedir-lhes [às pessoas] uma opinião sincera. Querer sempre melhorar é o que faz com que se levem as coisas para a frente. Acabo de chegar de Inglaterra, estive lá dois dias a fazer um estágio num restaurante – é importante, isso.
E sair de Portugal?
Já tivemos algumas propostas para replicar conceitos, sair, sim. No entanto, eu gosto muito do nosso Portugal e quero muito ficar aqui. Aqui já tenho problemas e alegrias suficientes para me entreter (risos).
Há pouco tempo passou a série The Bear, que aborda a pressão nas cozinhas e a masculinidade tóxica. Isto acontece?
Não é um mito, isso acontecia há 25 anos, quando eu entrei (na área). A pressão, o medo, o estar sempre em cima… a exigência é uma coisa muito boa mas sempre em conta e medida. Não podemos menosprezar ninguém, até porque se fizermos isso as pessoas não continuam connosco e isso não faz sentido. Temos de ser duros, sim, mas comprometidos com as pessoas. E ser assim não é aceitar que as pessoas façam as coisas mal feitas, mas sim exigir que as façam bem. Mas ao mesmo tempo também é dar carinho, saber ensinar, saber dar boas coisas.
A liderança ensinou-lhe isso?
Fui percebendo que era essencial. Isto não se faz sem exigência e sem rigor, sou comigo e com os outros.
Como é o português à mesa?
Cada vez se sabe comer melhor em Portugal, vamos tendo uma cultura gastronómica mais apurada. O português gosta muito da sua comida, acha que a sua comida é a melhor do mundo. Tudo o que leva azeite, cebola e alho é o melhor do mundo. Mas está, também, disposto a experimentar coisas diferentes. O português é alguém que gosta de sal, ervas aromáticas, tem um paladar muito orientado pelo azeite, pelo alho e pela cebola, e depois tanto gosta de peixe como carne e tem facilidade em aceitar gordura na refeição. E depois tem uma cultura heterogenia e completa que vai do bacalhau aos legumes, à caça, passando um pouco por tudo. Incluindo os vinhos, dos Portos aos destilados.
Sente responsabilidade nessa contribuição? A de apurar o palato dos portugueses, através das propostas gastronómicas além Talho?
É um bocadinho pretensioso dizer isto, mas tento sempre trazer o mundo a Portugal. No novo, o Las dos Manos, funciona também assim. Essa será sempre a minha linha, ir buscar influência dos sabores do mundo.
Como reage aos reconhecimentos, aos prémios? Como vê o universo Michelin? Há uma pressão?
Hoje em dia, sabe-se de uma forma mais objectiva quais são os critérios para se chegar à valorização Michelin, em concreto. Antigamente os critérios eram mais nebulosos. É preciso uma excelente comida como também um excelente serviço – há uma série de coisas. Nunca tive nenhum restaurante que abri com o objetivo de ganhar uma estrela Michelin. Talvez um dia. Valorizo muito o trabalho que toda a gente faz, tanto os que têm estrela mas também os que não têm, valorizo o trabalho de todos, aliás tenho vários amigos de Norte a Sul. Entre todos os meus restaurantes, tenho diariamente cerca de 600 pessoas a avaliar-me.
O que é que de mais curioso lhe disseram sobre a sua comida?
Talvez a originalidade, mas é difícil responder. Uma vez, um senhor chamou-me à mesa, estava a chorar. Ele disse-me que a degustação que tinha feito o tinha comovido de tal forma que o emocionou como se estivesse numa ópera. É inesperado. O que me dá muito gozo, na verdade, é pôr as pessoas a comer coisas diferentes. O Talho ajudou a desmistificar o que era um bife tártaro, por exemplo.
Onde? Rua Carlos Testa, nº 1ºB Quando? Todos os dias das 12h às 16h e das 19h às 23h30 Reservas otalho@comeromundo.pt ou 213 154 105