O metal destronou o K-pop. Foi com o 13º disco de originais da banda portuguesa Moonspell que os sul-coreanos BTS saltaram do primeiro lugar do top de vendas nacionais por quatro semanas consecutivas. Fernando Ribeiro, 46 anos, vocalista da banda de heavy metal nascida na Brandoa, mas hoje do mundo, não é fã da "uniformidade assustadora" da popular banda de Seoul, confessa. Prestes a celebrar três décadas de Moonspell, Ribeiro fala com a Must sobre o novo álbum, Hermitage, e sobre a importância de questionar: a indústria da música, a classe política, a nossa história e o mundo.
Este disco, Hermitage, entrou diretamente para o primeiro lugar do top de vendas nacional. É a prova que o metal em Portugal está de boa saúde?
Se dissermos agora que estamos de boa saúde as pessoas até nos podem levar a mal (risos). Mas felizmente estamos. O metal em Portugal já existe há bastante tempo, teve assim o seu primeiro fulgor nos anos 80, como praticamente toda a música em Portugal. A partir de 1974 conseguimos reunir a liberdade e as condições necessárias para ter toda a música que não fosse tão alinhada com o sistema vigente. Entretanto nos anos 90 surgiram os Moonspell e nós começamos a ter um percurso diferente das outras bandas de metal e a conseguir felizmente chamar mais atenção a este estilo que se praticava em Portugal e em todo o mundo. E fomos consolidando. Primeiro o público, depois o interesse da imprensa e, felizmente, nos últimos anos, o interesse da indústria também. A minha luta agora não passa pelos Moonspell estarem no top, isso são os nossos fãs que, mesmo em condições adversas, vão comprar os discos, mesmo que remotamente. Nós já estamos noutra [fase] que é lutarmos para que todos os discos que foram vendidos em Portugal, quer nas lojas que contam para a estatística no top quer noutros sítios sejam todos contabilizados. Acho que é aí que tem de se lutar porque toda a gente passa a mensagem errada de que o mercado físico está morto, temos é de adotar o digital, quando isso é tao prejudicial para as bandas.
Esse desfasamento entre números acontece porque?
Acontece porque tem sido lenta a adaptação de certas coisas da indústria musical e precisamos de novos players. Uma das coisas que realmente mudou foi o facto de os Moonspell terem assumido a sua própria distribuição, através da Alma Mater Records. É uma parceria que nós fazemos desde o álbum em português, o 1755, e aí, já dentro das estruturas que existem, conseguimos de alguma forma e construtivamente falando tentar dar sugestões para que o sistema mude. Uma das coisas que se passa muito na música, e é um dos males sociais, é muita gente falar do que não sabe. Hoje em dia somos todos virologistas, quando nem a classe científica está de acordo uns com os outros. Também vejo pessoas com muita leviandade a falar do mundo da música, como é que se ganha dinheiro, como é que não se ganha, e isso não é assim tao inofensivo, passa a mensagem errada. É uma desinformação perigosa e faz com que a cultura, a música e as indústrias recreativas estejam no sítio em que estão em Portugal. E daí o heavy metal estar em sítios onde as pessoas não achariam que estava, como os Moonspell aqui em Portugal estão. Eu nunca desisti de lutar por aquilo que acho que é o nosso espaço. É importante, muito mais do que partilhar frases feitas no Instagram, ou associarmo-nos a um movimento porque a nossa agência mandou, que não lemos muito bem e achamos aquilo giro. Por isso é que há muito tempo, juntamente com a Audiogest, que gere o top, com a GFK, que é a empresa de estatística que faz a coleta dos números do top, tento que esta situação seja mudada, porque é bom para os Moonspell, como é obvio, também somos empresários, também temos de gerir a nossa carreira, mas é bom para o mercado. Cada vez que entramos no top finlandês recebemos uma chamada da Live Nation ou de outro promotor que está atento, que sabe os números, e que quer que os Moonspell vão fazer um concerto. É para isto que eu tento sensibilizar as pessoas, porque há uma dinâmica, as coisas não estão compartimentadas.
Dizer que os Moonspell são a mais internacional banda portuguesa é uma forma de justificar a visibilidade, ou a falta dela, que se dá ao metal em Portugal?
Acima de tudo é um facto. Eu já o disputei mais, agora estou mais velho, já tenho 46 anos, já não me interessa tanto estar a acenar com essa coisa da internacionalização. Mas o que é curioso é que fui algumas vezes convidado para workshops, conferências sobre internacionalização, e saí de lá com a ideia de que as pessoas não faziam a mínima ideia do que estavam a falar. Saí de la com o sentimento que estive a perder o meu tempo, porque há uma certa formatação na mentalidade e nas atividades que se exercem, muito burocráticas. A internacionalização, pela minha experiência e pela experiência de outras bandas de outros países periféricos que também se internacionalizaram tem outros condimentos, outra condição e outro contexto (...). Pessoalmente o meu discurso já não tem tanto a ver com isso, já não estou a dizer que é o melhor disco dos Moonspell, já não estou a vender o meu peixe, gosto de esclarecer quem está no outro lado sobre aquilo que realmente interessa. Mas é um facto que os Moonspell são a banda mais internacional portuguesa já há vários anos. Já foi desmentido, mas apenas por preferências, por amizade e não exatamente por uma comparação estatística de números. Claro que hoje em dia as pessoas já se atrevem menos, também porque há uma continuidade, que é uma coisa que não existe noutras bandas. Ainda por cima estamos numa cena musical que é muito realista, pragmática, mais competitiva do que o fado, por exemplo.
Olha para os Moonspell não enquanto caso único, uma exceção, mas enquanto precedente do que pode vir a seguir?
Também. Nós não somos a única banda internacional, há que olhar para o trabalho de outras pessoas que compreendem que Portugal tem limitações ao nível da absorção da sua musica. Muitas vezes faço entrevistas com rádios que não passam a nossa música. Porquê? Não sei. Mas falam comigo porque acham que eu tenho um bom discurso ou ficam surpreendidos por eu não gritar com eles (risos). Ficaríamos com uma cena musical bem melhor se conseguíssemos juntar esses mundos. A única coisa que eu realmente tenho um bocadinho de vaidade hoje em dia é que um adolescente pode chegar ao pé do pai e da mãe e dizer eu quero ter uma banda de heavy metal e não lhe vai acontecer o que me aconteceu a mim, porque já há um pé na porta, há uma banda de heavy metal em Portugal que consegue viver disso e tocar nos grandes palcos (...). É importante para nós conseguir ter algo mais do que Portugal. Temos um ótimo público, gostamos muito do nosso país, mas se estivéssemos limitados a Portugal não conseguiríamos viver da música, definitivamente.
O videoclipe da música 'All or Nothing' foi gravado num teatro vazio, como estão tantos por todo o país. Com a suspensão de concertos, como é que foi este ano? A pandemia retirou inspiração ou, pelo contrário, deu mais tempo para a composição?
Nós já tínhamos o Hermitage praticamente feito antes da pandemia. Depois em 2020 tentámos de alguma forma ir gravá-lo. Acho que essa foi a maior dificuldade. Nós gravamos em Inglaterra, íamos para o aeroporto e de repente Portugal estava na lista negra, voltava para casa e, de repente, Portugal já não estava e podia ter ido. Claro que houve esta falta de critério, ninguém se quis preparar, mesmo com evidências que qualquer dia poderia haver um fenómeno como este. Em 2021 penso que já não há desculpas para a cultura estar tão radicalmente confinada. É uma espécie de mensagem de castigo perigoso (...). [O videoclipe] acaba por ser simbólico e dos vídeos todos que lançamos até agora já vai com quase 300 mil visualizações. É um vídeo que as pessoas sentem com atual. Não foi essa a intenção de fazer o vídeo e nós não queremos nada romantizar essa realidade, é horrível tocar para pessoas de máscara, é horrível tocar para pessoas sentadas, mas também seria horrível não o fazermos. Este ano tem sido horrível nesse aspeto, passado a fazer e a desfazer planos.
De acordo com o plano de desconfinamento do Governo, os teatros as salas de espetáculos podem reabrir a 19 de abril. Já têm planeado o regresso aos palcos para tocar este disco ao vivo?
É engraçado porque o disco acaba por ser profético também para nós. Estamos completamente numa travessia do deserto. Queremos chegar a 2022 vacinados que é para podermos ir tocar lá fora. Nós temos alguns planos enquanto empresários da banda. O nosso objetivo agora é: queremos salvar 2021. Não temos um hashtag, mas podemos fazer (risos). Portanto estamos a tentar alternativas. Nós tínhamos alguns espetáculos programados cá em Portugal, nomeadamente festivais de verão, mas ao contrário de França, Alemanha, Reino Unido, Espanha ou até Estados Unidos, nós não estamos a pensar no facto de fazermos esses eventos acontecer enquanto há Covid. Parece que há aqui uma necessidade de irmos ao caso zero para que se desconfine como deve ser. Eu acho que fechar as pessoas em casa e depois reduzir os números é fácil, isso também eu faço, não é preciso ser primeiro-ministro, nem Presidente da República nem sequer ministro da saúde, é lógica. Não é preciso estudar tanto para chegar a essa conclusão. O difícil é o que outros países estão a fazer que é de alguma forma ter os eventos, como já aconteceu em Barcelona, em Madrid, ter eventos-teste a acontecer enquanto os números e o índice de transmissão vai evoluindo positivamente.
À primeira vista, o metal não vive exatamente do distanciamento social ou de ver concertos sentados. Como é que espera que sejam os próximos concertos?
Vivemos da saudade das pessoas que nos querem ver no palco. Mais uma vez recorremos à nossa família e à nossa comunidade Moonspell. O que vai acontecer é vermos se podemos fazer alguma coisa em Portugal. Não há indicação se se pode fazer eventos ate "x" pessoas, por exemplo em França decidiu-se até 5 mil pessoas. Nós já estamos em pré-produção para alguns festivais em 2021 que talvez aconteçam, em Espanha, Finlândia, Croácia, por aí fora. Mas em Portugal vamos tentar fazer formatos híbridos, com a celebre lotação Covid, que é metade das salas, sendo as regras as mesmas, e aproveitar para fazer concertos em streaming. Fizemos uma experiência que correu muito bem. Vamos também fazer coisas diretamente do nosso estúdio, temos também um clube de fãs no Patreon.
Os Moonspell têm o Patreon, os The Gift criaram uma aplicação. A música sempre viveu muito da experiência física ao vivo. Criar estes novos formatos digitais é uma inevitabilidade para as bandas em pandemia?
Sim, isso e os marketplaces, a venda online. Os nossos mecanismos, as nossas estatísticas têm que incluir isso, que já são incluídas noutras perspetivas. O Patreon é uma plataforma muito justa feita a pensar nas bandas, nós só temos que dar ao Patreon juntamente com a taxa paypal cerca de 12% do nosso revenue, enquanto qualquer conteúdo tanto no Spotify ou no Youtube é alvo de uma redistribuição muito mais injusta para os criadores de conteúdo. Hoje em dia a mentalidade privilegia quem tem a forma e não quem tem o conteúdo. Se quisermos ser filosóficos, a forma é vazia de conteúdo, mas não é isso que as pessoas pensam e fazem. No caso dos The Gift, eles fizeram uma coisa muito corajosa que foi criar completamente o seu próprio patreon, foi mesmo uma aplicação criada de raíz. Os Moonspell são uma banda com menos meios e, portanto, aproveitamos o que havia. O que existe é, e penso que é a nossa solução a longo prazo, um caminho evidente até uma independência. [O Patreon] já é uma plataforma lucrativa para os Moonspell. Acho que esse é o futuro. Ainda temos contratos discográficos, agências, etc., mas somos uma banda muito independente.
Começaram a trabalhar no novo disco antes da Covid-19, presumo, mas escutando-o agora há pontos e temas que se alinham... Esta reflexão sobre os eremitas e a solidão partiu de onde?
Depois de fazer o álbum 1755 fizemos uma música que era Todos os Santos, que tinha uma conotação de que os santos não ajudam nem para cima nem para baixo, e uma coisa levou à outra e comecei a ler sobre registos de solidão, pessoas que faziam reclusão... Em 2017, quando comecei a escrever as primeiras letras para o Hermitage, já estávamos enquanto espécie com uma grande facilidade de comunicação, principalmente por causa da internet e da rapidez, e estávamos a tornar-nos um bocado ermitas, pelas nossas opiniões, pelas nossas crenças futebolísticas, musicais, os assuntos fraturantes, etc. A imagem que eu tinha era a de uma pá de pedreiro e que estávamos a construir uma espécie de casulo ou de ermida à nossa volta. Essa foi a primeira pedra. Depois fui ler sobre a vida dos eremitas e é fascinante, realmente. Das coisas que mais aprendi foi o serviço à comunidade que os eremitas prestam. Este Hermitage é um disco solene, que não sendo escrito de todo para refletir uma pandemia é inevitável lê-lo à luz da pandemia. Parece que infelizmente acertamos nalgum assunto e digo infelizmente porque preferia que isto fosse uma obra de arte não associada à pandemia.
Na música The Greater Good ouvimos "How about no leaders and no nations". Lembra um bocadinho um verso similar de Imagine, de John Lenon, "Imagine there's no countries ". Há uma mensagem política também nesta música?
Acho que The Greater Good tem muito mais a ver com a Imagine do que propriamente com músicas ou mensagens metaleiras. Normalmente é sobre a Segunda Guerra mundial ou sobre os Vikings. Eu também sou crítico que as bandas de heavy metal repitam sempre o mesmo discurso e que não o façam como bandas de outro género que vão à procura de outros mananciais de inspiração. Portanto a The Greater Good, tal como a Imagine, não oferece direções, não oferece respostas, mas pergunta as perguntas que devem ser feitas. Claro que é uma reação a uma contradição que existe que é: nós nascemos em 74 no espírito do novo federalismo, da comunidade europeia, da comunidade entre os povos, do "vamos acabar com a guerra", "vamos acabar com a fome", do "vamos investir na cultura". E nós vemos ainda no nosso tempo de vida isso a desintegrar-se de uma forma extremamente erosiva, rápida aos nossos olhos. Há certas coisas que não consigo entender, e por isso pergunto.
A música ainda tem esse papel, de nos fazer questionar?
Serve para tudo. Há pessoas que gostam de música para entreter, outras para questionar, outras para usar no ginásio, outras para irem para a frente de uma linha costeira mandar pedras ao mar. A música é uma coisa que não tendo aquela primeira utilidade de que se fala tanto hoje em dia, é uma coisa quase como um canivete suíço, serve para tudo. Lembro-me de estar na maternidade quando a Sónia [Tavares] deu à luz o Fausto e de vir um casal ter connosco e estavam a ouvir The Gift, de casamentos em que abrem o baile com a mais baladeira, gótica música dos Moonspell. A música serve para tudo e é difícil contabilizar as sensações que este tipo de arte dá, que são tão mais poderosas e presentes. A música é sempre aquele amigo com quem nós não falamos e que às vezes até desprezamos e depois pensamos nele ou nela e dizemos ‘vá, deixa-me lá telefonar’. Como dizem os The Doors, "music is your only friend". Agora se entretém, se reivindica, se muda, se é política? É um pouco de tudo e acho que as bandas têm de conviver com isso, apesar da resistência que as vezes há por parte do público. "Façam música, não façam politica", dizem, e eu compreendo. As pessoas estão fartas de discursos e por vezes só querem é ouvir um bom heavy metal, sem máscara, soltar o cabelo e ir ali para o meio do moche. Nós se conseguirmos cumprir todos esses papéis estamos a cumprir o nosso papel principal enquanto banda que é ter uma espécie de conexão autêntica com as pessoas que nos ouvem.
A obra dos Moonspell tem muitas referências históricas e da história portuguesa. Numa altura em que a herança colonial está no centro do debate, já pensou em algum momento refletir ou escrever sobre esta parte da história?
Interessa-me a história de Portugal. Boa ou má é a nossa impressão digital no mundo. Recorro ao meu amigo Nietzsche que dizia que a nossa cultura iria evoluir para uma cultura de espécie judaico-cristã em que íamos apontar a culpa e o dedo a tudo e mais alguma coisa, mas que não teríamos a capacidade de perdoar. Que é uma coisa que está nos ensinamentos mais básicos, nomeadamente do cristianismo, que é uma cultura do perdão. Como tal, eu gostava de ver as pessoas que têm razões de queixa, como é óbvio, o colonialismo foi horrível, não só o português, mas o de todas as nações brancas que o fizeram. Mas na minha opinião estar a destruir esse passado ou estar a exercer violência sobre ele vai completamente ao encontro do que o Nietzsche dizia de a nossa cultura ser incapaz de perdoar. Ainda irei escrever alguns álbuns em português, como o 1755, sobre alguns aspetos da história de Portugal. Não a glorifico, mas também não a nego, como a própria história pessoal. Nós fazemos bem e fazemos mal. O mais errado aqui é o moralismo e a incapacidade de perdoar. Acho que podemos ter uma atitude construtiva nesse perdoar do colonialismo português, principalmente não da minha parte, mas das pessoas que sentiram, e que sentem isso na pele. Mas acho que estamos a ir num caminho muito perigoso, que depois envolve, como é óbvio, o cancelamento da arte, a destruição de estátuas, etc., e penso que ainda não temos a distância histórica para fazer as coisas dessa maneira. Preferia muito mais que houvesse um entendimento. Se não já tínhamos destruído qualquer vestígio do império Romano, que era um império estudado e adorado e foi provavelmente dos impérios mais sanguinários do mundo. É um assunto muito complexo, mas acho que a Arte e os artistas devem falar nele. Mas devem-se também colocar numa ótica de perdoar as coisas que estão malfeitas. Acho que é a única saída. As outras coisas vão contribuir para mais divisão e mais destruição.