Estava a pandemia a rebentar em todo o mundo e André Buldini tornava-se gerente do Six Senses, era abril de 2020 e ano e meio depois chegava a diretor geral de um dos mais charmosos hotéis de luxo em Portugal. Um projeto que emoldura o postal que é a Quinta do Vale Abraão, oito hectares de verde sobre o Douro que, já sabemos, mas nunca é demais repetir, é a primeira zona demarcada de vinhos do mundo, Património Cultural Imaterial da UNESCO e da Cultura portuguesa.
O Six Senses é hotelaria moderna na sua essência, tem um forte compromisso com "a comunidade, a sustentabilidade, a hospitalidade emocional, o bem-estar e experiências criadas com um toque de peculiaridade". Ainda único em Portugal (em breve inaugura o segundo, em Lisboa), este hotel magnífico tem 71 quartos e ainda suites e villas. E um centro de wellness superlativo, dos melhores do país, com uma grande piscina interior, vários tipos de sauna e massagens de assinatura, algumas feitas com vista para os jardins e o rio.
Não se imagina melhor refúgio quando o mundo entrou em pânico com a pandemia, foi quando André Buldini chegou. Começara na hotelaria em 2004, nos hotéis Sana, como sales manager, para um ano depois entrar no Four Seasons de Lisboa como heads concierge, onde esteve seis anos, até se mudar, em 2011, para Marraquexe, como front office manager e depois gestor dos quartos, cargo que também exerceu em Casablanca. De 2016 a 2020, ainda no mesmo grupo hoteleiro, dirigiu os quartos do Four Seasons de Londres, até ser convidado a vir para o Douro, "voltar a casa" como o próprio diz. Se um hotel é "normalmente algo de novo, construído, sem história, nós entrámos na história e damos-lhe continuidade."
Mostra-nos as novas pool villas desta valley wing, que inaugurou em julho, era a antiga adega da família Serpa Pimentel, dona da propriedade, que produzia vinho do Porto nestas terras e vendia a sua produção à Sandeman. Foi pensada pelos arquitetos que recuperaram a casa original de família, o gabinete de Rebelo de Andrade, com check-in independente do hotel, e os quartos desta ala podem ser vendidos individualmente, ser seccionado um só piso ou um dos lados da casa, ou ser privatizada para um grupo.
Alguns quartos são comunicantes, outros têm sauna própria e pequenos frigoríficos na casa de banho para guardar os cosméticos, detalhes em madeira pombalina reaproveitada e todos os azulejos são Viúva Lamego, pintados à mão especificamente para o Six Senses. Por todo o lado se vêem elementos orgânicos: "Muita pedra, muita madeira, muita água, tudo acolhedor e tranquilo", descreve o diretor. No exterior, os sofás são verdadeiras camas sob as árvores onde é fácil imaginar uma tarde submersa num livro e uma sesta sem horas. "Ali atrás estão nove unidades que também fazem parte desta valley wing, porque delas se vê o vale de vinhas que acolhe estes dois edifícios", as casas parecem fazer parte da paisagem, "está tudo escondido, os edifícios estão ali aconchegados e somos abraçados pelo vale. Esta vista traduz tudo o que tentamos exprimir."
Como veio parar à hotelaria?
Há 18 anos. Eu nasci em 1974, estudei em Lisboa e depois decidi estudar hotelaria porque um primo meu estudou hotelaria e estava na África do Sul e ouvia aquelas conversas dos hotéis, do seu passado, foi sempre uma coisa que me fascinou muito. E a possibilidade de podermos hoje trabalhar no Douro e amanhã em Londres e depois estar na Ásia, essa disponibilidade para estar sempre em ambientes diferentes e conhecer pessoas diferentes também me atraiu sempre muito. A minha primeira experiência foi num clube ténis ao pé de minha casa, tinha 15, 16 anos, aqueles trabalhos de verão atrás do balcão do clube a vender pastéis de nata e cafés, achei imensa piada aquilo. Tinha um gosto por servir, se uma pessoa gosta de se preocupar com o bem-estar dos outros, e estar atento a pequenos detalhes, podemos depois criar momentos únicos e inesquecíveis.
Sim, deve partir de uma certa generosidade.
Não é? Quem não gosta de fazer os outros felizes, neste sentido do serviço e da experiência, não vai ter gozo no seu dia-a-dia...E estamos sempre a crescer. Por isso também escolhi a hotelaria por estar constantemente a ser desafiado, sempre a sair da zona de conforto.
Trabalhou quase sempre em luxo?
Tive o privilégio de trabalhar em organizações de três, quatro e cinco estrelas que não eram luxo, o que também é uma escola. Ter apenas uma visão da hotelaria pode ser muito limitativo e redutor, acharmos que só existe isto... É ver as dificuldades, o que não há, o tipo de clientes também é diferente. Também me aconteceu num cinco estrelas de luxo passar por momentos de crise em que é preciso reinventar o negócio, é possível fazer com menos.
Com tantos Six Senses espalhados pelo mundo, porque veio aterrar no Douro?
Estava na Four Seasons há 15 anos, e um amigo, que trabalhou lá comigo, era o diretor geral deste hotel e, já há muito tempo, andava a seduzir-me para eu vir para a Six Senses: "tens de conhecer os nossos valores e a nossa visão". Então houve uma oportunidade de vir para cá, de voltar a casa. Quer dizer, era impossível recusar, não havia como não me atirar de cabeça... É impossível trabalhar aqui e não ficar apaixonado.
E sair da intensidade de Londres para este silêncio dos vales.
Toda a gente diz: "Como é que conseguiste? Deve ser muito difícil. "E eu fico a olhar porque não, não foi nada difícil. Eu tinha o sonho de viver em Londres desde a adolescência, e adoro Londres, mas ao chegar aqui e ver tudo aquilo que se ganha... Não sei se é porque já tenho 48 anos, se calhar ajuda, mas a intensidade que se passa aqui durante o dia é exatamente igual ao que se passa em Londres, não se deixem enganar por estar tudo tão calminho. Digo sempre: para se estar tranquilo aqui, há muito stress e correria por trás. Depois temos a sorte de ter clientes internacionais, e também portugueses, que trazem um pouco desse cosmopolitismo até ao Douro, estou sempre em contacto com o que se está a passar lá fora. Não me sinto esquecido. Claro que tenho saudades de ir ver um musical, mas o Porto está aqui tão perto.
A abertura desta ala nova, obviamente é uma nova visão de negócio, mas também tem a ver com a procura, cada vez maior, de uma proximidade de casa, de uma sensação de ninho.
É sim, e a pandemia veio potenciar ainda mais essa procura que não existia: ter a sua casa longe de casa. Os clientes podem ficar aqui a ter a sua própria vida independente, cozinha própria, uma piscina privada aquecida e um jacuzzi familiar, um ambiente mais resguardado, e está a três minutos do hotel. As suites em baixo têm o seu próprio jardim privado e as suas espreguiçadeiras. O que fizemos foi replicar o que temos no hotel aqui, o cliente não sente que tem de ir ao edifício principal. Até as sessões de ioga acontecem em ambos os sítios.
O Six Senses junta a tradição e a sustentabilidade, visões centrais na hotelaria, hoje mais do que nunca, é como se a multiculturalidade nos fizesse reparar no nosso património, e no futuro.
Quando abrimos, em 2015, com esta vertente da sustentabilidade das experiências e do local - vamos fazer as nossas velas e os nossos óleos e produzir as nossas alfaces - olharam para nós, assim um pouco, como: "Estes hippies estavam no sul da Ásia e agora vêm para Portugal, quem é esta gente?". E é engraçado, agora tornou-se o normal, não há nenhum hotel que não fale em sustentabilidade e que não queira ter a sua quintazinha para plantar alguns legumes. Acho isso ótimo, inspirámos outras organizações a fazer o mesmo. A nossa missão em termos de sustentabilidade e wellness é isso, é uma missão. Estive no Congresso de Hotelaria de Portugal e falava-se muito no "sense of purpose": as pessoas querem ir trabalhar para um sítio que tenha um sentido e um propósito. Nós temo-lo aqui e é realmente essencial. Na outra companhia em que estava era serviço, serviço, serviço, o cliente, tudo impecável, é excelente e uma escola fantástica, mas nós aqui temos uma visão de reconexão: conectar-nos com este espaço magnífico de forma a podemos trazer estes clientes, que vêm de mega cidades, e chegarem aqui para se reconectarem e se descobrirem. É engraçado, às vezes chegam à receção ainda com aquela energia e ficam intimidados pela calma, mas no outro dia acordam e começa tudo a quebrar e a dobrar.
E há uma coisa que nós fazemos, desde o ano passado, que é convidarmos artesãos locais e a Joana [Van Zeller, diretora de comunicação, que cresceu nas quintas do Douro], ajudou-nos muito a identificar estes artesãos, que vêm durante um mês, dão workshops e mostram aos nossos clientes e colaboradores a sua arte.
É uma forma de trazer para dentro da quinta as pessoas que vivem à sua volta.
Isso, trazer a comunidade. Sabe, 85% dos nossos hosts são recrutados localmente, e isto faz parte da filosofia Six Senses. Não só cria um impacto muito positivo e é uma grande responsabilidade para nós, porque providenciamos para 220 famílias, mas também se traduz num nível de serviço muito especial, que é a diferença entre serviço e hospitalidade. O serviço é servir do lado certo, em minutos e retirando na hora certa, a hospitalidade é cor e são as pessoas que trabalham aqui. São pessoas que têm tanto orgulho de viver nestas aldeias e de ter a oportunidade de mostrar aos clientes, estrangeiros e portugueses, o quão fantástica é a sua região. É o que nós chamamos de hospitalidade emocional porque flui naturalmente, as pessoas estão a partilhar a sua paixão. E nós temos sorte que 98% dos nossos clientes vêm preparados para isso, de vez em quando temos um ou outro cliente que vêm muito formatados para aquele conceito clássico de serviço, e realmente não é aí que nos posicionamos.
Esse localismo aplica-se à comida também.
É o "eat with Six Senses", que não só fala em produzir localmente e só comprar produtos sazonais, o tal farm to fork, mas em não utilizar alimentos processados. E tudo isso vai, mais uma vez, de encontro à parte do bem-estar. Agora implementámos, à entrada do pequeno-almoço, um immunity bar e eu todos os dias de manhã vou lá beber um sumo de spirulina porque o Javier, o nosso diretor de wellness, diz que é ótimo para o sistema imunitário. E lá está, estamos tão formatados em ir para o pequeno-almoço que perdemos aquelas pequenas coisinhas que estão no nosso caminho, e o objetivo destas férias é exatamente esse, sair daquele ritmo: deixa-me ir antes por este caminho e parar para ver isto. Olha aqui uma kombucha, ou um kefir, o que é?
Vocês têm vários recantos com surpresas, em todo o hotel.
É nesses recantos que se descobre qualquer coisa, mas tem de se estar disponível para isso. Às vezes temos de nos soltar um pouco e estarmos disponíveis para experimentar estas coisas diferentes, descobrir outras coisas que se aprende a gostar.
Qual é o perfil do cliente Six Senses?
É muito variado, mas diria que é acima dos 40 anos, americanos, portugueses, brasileiros e ingleses são o nosso top quatro. Uns procuram a vertente wellness, outros apenas um hotel com vinhos, e inserido numa região que tem cultura. Mas os nossos agentes de viagens identificam-nos muito como um hotel de wellness.
O próprio nome da cadeia aponta-nos para a sensorialidade.
Sim, e daí nós não termos um spa, mas temos um wellness center. Nenhum hotel de cinco estrelas de luxo pode deixar de ter um spa, mas aqui é um outro nível, é outra exigência: há uma obsessão pelo bem-estar, no bom sentido. Temos no board do Six Senses a Anna Bjurstam, que é a wellness pioneer, o que já diz tudo, sentada ao lado de todos os diretores, porque o wellness é estratégico. E há esta constante procura pela inovação para lançar a próxima tendência, por isso lançamos os nossos programas, e um dos mais importantes é o do sono. Outra coisa que a pandemia trouxe foi a consciência de que posso ter dinheiro, mas se não tenho saúde, nem qualidade de vida, ele não serve para nada. As pessoas tornaram-se muito mais curiosas por estes temas, querem experimentar e saber os benefícios e de que forma vai potenciar o seu bem-estar no dia-a-dia.
Por falar em refúgio, vocês também foram pioneiros na organização de retiros, que agora estão na moda, e algumas das pessoas que os dirigem são muito fora da caixa para um hotel de luxo, que costuma ser mais clássico...
Nós gostamos de ser fora da caixa, fun and quirky, como costumamos dizer. E é isso que os clientes também querem quando nos procuram. Os retiros para nós são muito importantes e queremos ter, todos os anos, um programa forte no inverno, a oportunidade de os clientes virem cá passar três, quatro noites com o seu líder de eleição, ter a oportunidade de o conhecer e partilhar as suas experiências neste cenário magnífico de reconexão, tudo muito espiritual, entrar em comunicação com outras vidas ou pessoas que nos deixaram... (Não consegui participar, fiquei super curioso.) Queremos é que as pessoas se sintam bem e confortáveis e levem daqui uma memória que não esqueçam mais, é o mais importante.
Da sua experiência, quais são as grandes tendências da hospitalidade? É alugar casas em vez de quartos, esta escolha do bem-estar...
É a possibilidade de escolha. É inverno, está sol, quero usar a piscina exterior, não posso ter só uma interior, tem de haver escolha. Nesta hotelaria de luxo temos sempre de trabalhar para haver escolha, em qualquer momento.
Como olha para este Portugal agora tão desejado pelo turismo e pelos "refugiados" ricos? Sentimos um pouco de medo que engulam a nossa pequena aldeia?...
Quando saí de Portugal, há 15 anos, vivia em Lisboa e Lisboa só acontecia à sexta e ao sábado, e lembro-me de conduzir durante a semana e as ruas estavam desertas à noite. E não havia nada, queríamos um café diferente no Chiado, andávamos a procura de uma coisa um pouco mais internacional... E passado, 15 anos, há de tudo, há cada vez mais estrelas Michelin, Lisboa não pára! O Porto, que eu descobri recentemente, passou também a ser uma cidade mais cosmopolita, com tantas coisas a acontecer. As pessoas queixam-se de haver muitos turistas, mas graças aos turistas nós tivemos a possibilidade de sair também, de nos abrirmos um pouco ao mundo, hoje somos também mais cosmopolitas e isso é ótimo. Têm trazido imenso valor, não só económico, como social, conhecer outras pessoas, muitas vivem cá, acho muito bom para o país. Agora tem de haver políticas que protejam a nossa cultura e o nosso bem-estar, não quero entrar em políticas, mas a gentrificação das cidades não pode acontecer. Eu agora não posso viver no centro do Porto, onde sempre vivi, porque não tenho capital? Com este dinheiro todo que está a entrar tem de haver uma forma de o canalizar de certa forma, porque os estrangeiros também vêm para aqui porque querem essa autenticidade, se desaparece, porque vamos ter tudo igual ao que encontram em Londres, Madrid, Nova Iorque, vão acabar por se ir embora. Acho que é esse sentido do lugar, essa localidade, que nós temos de proteger.