Há uma honra rara em Washington, concedida a qualquer funcionário do governo que apareça nos cinco grandes talk shows de domingo no mesmo dia. Chamam-lhe o "full Ginsburg" por causa do advogado de Monica Lewinsky, William Ginsburg, que foi o primeiro a escalar este Evereste político em 1998. Perto do pico da pandemia do coronavírus, esta distinção ganhou um novo nome. "O full Ginsburg tornou-se o full Fauci", diz o Dr. Anthony Fauci quando nos encontramos no Zoom, com um orgulho que só um conhecedor experiente do círculo de Washington podia sentir.
Durante um tempo, era impossível ligar a televisão sem dar de caras com o pequeno médico. "Em Fauci confiamos" tornaram-se as palavras de ordem da pandemia, estampadas em autocolantes e canecas. O diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas foi apelidado de "médico da América", com o seu rosto a adornar tudo, desde t-shirts a donuts. Foi criado um boneco seu. Milhares de pessoas assinaram uma petição para que a revista People o distinguisse como o homem mais sexy do mundo. Tornou-se um meme – e um herói.
Nos longos e dolorosos meses da pandemia, Fauci tem sido o curador-chefe da América, com o seu pragmatismo calmo e experiente a contrastar com o volátil presidente. Fauci tem sido o oposto de Donald Trump, injetando ciência e sanidade no caos dos agora extintos briefings diários do grupo de trabalho dedicado ao coronavírus. Ficarão por muito tempo na memória coletiva.
Uma sondagem realizada em abril atribuiu a Fauci uma taxa nacional de aprovação de 78%, com apenas 7% de desaprovação, números que qualquer presidente desejaria. Depois Fauci desapareceu. Especulou-se sobre um desentendimento com o presidente. Teria cometido o pecado capital de qualquer funcionário da era Trump: tornar-se mais popular do que o chefe? Foi posto de lado? "Absolutamente", diz ele rindo de forma totalmente sincera. "O que mudou é que o foco está agora na reabertura económica, e por isso eu estou no banco".
Para Fauci aparecer no horário nobre, precisa de autorização da Casa Branca, o que significa que não há mais full Gingsburgs para si. "Ainda recebo o mesmo número de solicitações de todas as estações e canais do cabo", explica. "Mas simplesmente não tenho autorização".
É difícil imaginar algo mais condenatório na mente de Trump do que tirar alguém da televisão. Mas há uma "vantagem" em ser-se descartado, aponta Fauci, que é ter mais tempo para se focar no desenvolvimento de uma vacina para o coronavírus, a missão que agora o consome. Outra vantagem menor é que finalmente tem uma hora livre para gastar numa videochamada comigo, refletindo sobre tudo o que lhe aconteceu – e ao mundo – nos últimos meses, e o que poderá acontecer a seguir.
São sete da manhã quando falamos – meio da manhã para o famoso médico. Está na sua secretária em Bethesda, Maryland, pequeno e elegante, tal como na TV, de camisa e gravata fina azul. À primeira vista, o gabinete de Fauci é muito parecido com qualquer consultório de um médico: fotografias das três filhas na parede, dicionários médicos e arquivos de pacientes nas prateleiras. Numa outra vida, Fauci teria dado um excelente médico de família.
Depois vemos fotos emolduradas dele com os presidentes Bush, Clinton, Obama e Trump – e percebemos que aquele homem tem carregado sobre os ombros a saúde de uma superpotência há quase cinco décadas. Mas nunca como em 2020, aos 79 anos.
"Tem sido extraordinário", diz, com o seu familiar sotaque de Brooklyn. "A minha vida era insuportável a determinada altura. Andava literalmente a dormir três ou quatro horas por noite. Estava constantemente à frente das câmaras, a lidar com um surto mortal que está a devastar o planeta, com todas as nuances políticas, a medir cada palavra que dizia".
Por vezes, essas palavras saiam-lhe caro. Apesar de toda a popularidade de Fauci, uma pequena minoria de americanos vê-o como o diabo encarnado, o "Dr. Desgraça", o burocrata que levou Trump a fechar o país sem motivo. Circularam até conspirações selvagens sobre os seus laços com as grandes farmacêuticas e o "deep state".
O que veio a seguir foram ameaças "credíveis" à sua vida, juntamente com o assédio persistente à sua mulher, Christine, e às suas filhas. "Entram nas suas contas de email e iPhone e enviam emails obscenos", conta Fauci. "Sabem onde trabalham, onde vivem, e escrevem a dizer ‘Estás nesta morada’, ‘Vejo-te a passear o cão’, coisas muito más". Não vai a lado nenhum sem a proteção dos serviços secretos.
Não é a primeira vez que o médico se vê sob ataque. Como médico recém-formado, em 1966, Fauci foi convocado para o Vietname e cumpriu a sua obrigação militar como "boina amarela" nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH). Está lá praticamente desde então, tendo aconselhado seis presidentes desde Reagan, e trabalhado no ébola, zika e gripe suína. Em 1981, surgiu um novo vírus desconhecido que atacava o sistema imunitário e era particularmente prevalente entre homens gays. Um jovem imunologista, na altura, Fauci dedicou-se à investigação do VIH / Sida poucas semanas depois dos primeiros casos relatados. Isso "transformou" a sua vida, mas também fez dele o símbolo da intransigência do sistema de saúde em relação ao VIH. "Anthony Fauci, és um assassino", escreveu Larry Kramer, dramaturgo, produtor de filmes e ativista dos direitos LGBT, enquanto ativistas gay furiosos marchavam no NIH gritando "F*** you, Fauci".
"A Sida foi um desafio maior [do que o coronavírus] ao longo do tempo", reflete Fauci, descrevendo os anos 1980 como um período "muito negro" da sua carreira. "O número final de mortes foi enorme, atingindo cerca de 38 milhões em quase quatro décadas. Ainda temos mais de um milhão de mortes por ano". No entanto, houve progressos nos tratamentos e Kramer, que morreu no mês passado, tornou-se um amigo chegado.
Ao longo dos anos, foi a possibilidade de um coronavírus como o Covid-19 que manteve Fauci acordado à noite; um vírus respiratório mortal altamente transmissível que passou dos animais para os humanos. Esta pandemia foi o seu "pior pesadelo tornado realidade".
Na maioria das vezes, as figuras públicas muito conhecidas não são aquilo que esperávamos, mas a companhia de Fauci é realmente um tónico. É bom recordarem-nos como é um funcionário público modelo: genial, realizado e dedicado. Até a sua família é trabalho: Fauci e a sua mulher, Christine Grady, são os Brangelina da saúde pública, com Grady a liderar o departamento de bioética do centro clínico do NIH. Conheceram-se quando cuidavam de pacientes com VIH/Sida nos anos 1980, e trabalharam juntos, correram maratonas juntos, e criaram juntos as três filhas.
"A Chris é muito especial", diz Fauci. "Entende as subtilezas e o stress de tudo o que está a acontecer". Em meados de maio, Fauci tirou uma rara noite de folga para comemorar o 35º aniversário de casamento. "Comemos esparguete à carbonara com salada, com um pouco de vinho e um pouco de pão", lembra Fauci, como um verdadeiro ítalo-americano. Quem cozinhou? "Eu sou o sous sous sous chef", conta a rir.
Ser o porta-voz de uma pandemia rara é sem dúvida um desafio, mas fazê-lo às ordens de Donald Trump tem sido especialmente exigente. Uma das imagens marcantes da pandemia é a cara de choque de Fauci, enquanto Trump usava uma conferência de imprensa sobre o coronavírus para criticar o seu próprio departamento de estado. O presidente recomendou injeções de desinfetante, elogiou repetidamente a hidroxicloroquina e trata a ciência como uma bola de plasticina, que molda à sua vontade. Isso incomoda Fauci? "Claro que é frustrante", diz. "Obviamente ficas muito desconfortável. O meu trabalho e a minha identidade são a ciência. É preciso estar alinhado com a ciência, e quando se ouve declarações como essas, desligadas da ciência, é frustrante. Mas no fim de contas, a ciência e as evidências vão sempre prevalecer".
Durante os primeiros dias do vírus, diz Fauci, estava a "pressionar" a Casa Branca para fechar o país antes de a decisão ter sido tomada. Estava "muito preocupado" com a experiência do Reino Unido com a imunidade de grupo. Vê agora o atraso como um erro fatal? "Quando se fecha num determinado momento e se vê que os casos começam a ficar controlados, é-se quase obrigado a concluir que, se se tivesse fechado mais cedo, seria melhor", diz. "É óbvio, claro". "Teria sido melhor fazê-lo mais cedo", acrescenta.
"Mas a informação que tínhamos na altura não era assim tão inequívoca. É sempre fácil olhar pelo espelho retrovisor. [Mas] posso garantir que se tentássemos fechar a América com 12 casos e uma morte, o país teria pensado que éramos loucos". Vale a pena notar que outros países mais pequenos conseguiram fazê-lo.
Fauci passou a vida enquanto cientista a chocar com políticos carreiristas. Tem um lema, extraído de O Padrinho – não é nada pessoal, são só negócios - que descreve a forma pragmática como lida com os presidentes. A sua relação com Trump, diz, é "bastante boa. Somos ambos de Nova Iorque, somos da mesma geração, temos um estilo focado e determinado. Há esse tipo de proximidade".
Profissionalmente, porém, são como o dia e a noite.
Trump anunciou recentemente a saída dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual o país sido o principal financiador. Fauci acredita que é um erro sério. "A OMS cometeu alguns erros, falharam algumas vezes, mas o mundo precisa realmente da OMS", diz. "Por mais imperfeita que seja, é melhor melhorá-la do que eliminá-la. A minha preocupação é que, se os EUA se retirarem enquanto membro, isso não será bom para a saúde do mundo. Daí que estou muito preocupado com isso. Quero que continuemos a ter uma forte relação com eles".
Fauci não é dado a exageros irracionais, pelo que quando diz que espera ter 200 milhões de vacinas contra o coronavírus até ao início de 2021, isso é motivo de verdadeiro – ainda que cauteloso – otimismo. Porque é que está tão confiante? Afinal, nunca houve uma vacina para o VIH, com que trabalha há quase 40 anos.
"Uma boa pista para sabermos se seremos bem-sucedidos no desenvolvimento de uma vacina é o que o corpo é capaz de fazer contra a infeção natural", diz. "Não há exemplos em que o corpo tenha eliminado por completo o VIH naturalmente. No caso do coronavírus, a maioria das pessoas infetadas acaba por eliminar a infeção, o que significa que o corpo é capaz de dar uma boa resposta. Isso diz-me que, embora não haja garantias, é provável que consigamos desenvolver uma vacina que induza o tipo de resposta que nos protege da infeção".
Ao longo das muitas décadas de luta contra as doenças infecciosas, Fauci acredita que foi a corrida que o manteve são. É um processo "meditativo" para si. Passados todos estes anos, é agora mais provável vê-lo a fazer caminhadas rápidas sempre que a sua agenda o permite, o que muitas vezes pode ser a meio da noite. Relatos de Fauci a palmilhar as ruas são tidos como uma prova da sua disciplina e força de vontade, mas também parte de uma estranha fetichização que se desenvolveu durante a pandemia.
Tomados pelo medo do vírus e o tumulto emocional do confinamento, os americanos encontraram conforto e segurança no médico das corridas. A doutora Deborah Birx, coordenadora do grupo de trabalho da Casa Branca para o coronavírus, também foi alvo de adulação, mas nada comparável a idolatria de Fauci. Como é que ele explica isso? "Surpreendeu-me, sem dúvida", admite, vendo-o através do prisma dos dois Faucis: real e simbólico. "Há o Tony Fauci, eu, que os meus amigos e as pessoas conhecem. E depois há este símbolo, que o país e o mundo precisavam. Precisavam de alguém que fosse honesto, com grande integridade, e que dissesse as coisas como elas são durante um período de grande stress. Fui colocado por acaso numa posição com muita visibilidade".
Durante uma entrevista, em abril, perguntaram a Fauci quem é que gostaria que o interpretasse no Saturday Night Live. A sua resposta, naturalmente, foi Brad Pitt. Seguindo as leis imutáveis do show business americano, Pitt apareceu rapidamente como "Fauci" num sketch, alegadamente deixando o presidente com ciúmes.
"Esta figura não sou eu na verdade", insiste Fauci. "Não sou um sex symbol. Não sou parecido com o Brad Pitt, embora gostasse. O que não faço é levar essas coisas a sério. Se começasse a fazê-lo, não seria eu. Acho que sou um tipo muito humilde. Sei que é só um simbolismo, e não eu".
Fauci parece gostar dos holofotes e das tricas de celebridade, mas a conversa volta sempre à ciência e, claro, à pandemia, que à data desta entrevista já matou 110 mil americanos. "É óbvio que a situação em que nos encontramos é muito, muito difícil", diz, expressando preocupação de que os protestos que têm ocorrido nas ruas possam causar um "ressurgimento" do coronavírus e "atrasar-nos". Assim que chegue o inverno, acredita que poderemos ter "outro ressurgimento, o que pode ser realmente terrível".
Mesmo com o coronavirus a avançar, muitos cientistas já estão ocupados a prever outra pandemia nos próximos anos. Fauci acha que assistiremos a mais desastres? "Temo que sim", diz. "Com todas as outras distrações do mundo, a nossa memória é curta". Recorda as tentativas fracassadas de criar um stock estratégico de equipamentos de proteção e ventiladores depois da gripe das aves em 2005. "Não imagina as reações que estávamos a ter – ‘estás a exagerar, não precisamos disso’. A nossa memória das coisas más é muito curta".
Dado que Fauci se está a aproximar da sua nona década, outra pessoa poderá ter de liderar a próxima batalha. Pergunto-me como olha para o seu longo reinado na saúde pública. "Espero ser lembrado como alguém que dedicou toda a sua vida a melhorar a saúde do seu país e do mundo", diz. "Vou ter de me retirar um dia destes. Só espero fazê-lo voluntariamente".
Hipócrates, pai da medicina, disse que "a vida é tão curta, a arte tão longa para aprender", que resume muito bem o tempo de Fauci na Terra. "Tem sido uma vida cheia e desafiadora", reflete, trabalhando, correndo, esforçando-se a aprendendo a sua arte até hoje. Se ajudar a desenvolver uma vacina contra o coronavírus, será o coroar do percurso. Ao fim de uma hora fortificante com o Dr. Fauci, percebo que o melhor é deixá-lo continuar a fazer isso mesmo.
Exclusivo The Times/Atlântico Press