Conversas

Como Jeremy Hackett construiu um império na moda a partir do zero

Um homem visionário e amável, Jeremy Hackett inscreveu a sua história na evolução da alfaiataria britânica. De uma loja de roupa em segunda mão para uma referência clássica no vestuário masculino, ergueu uma marca de prestígio de seu nome Hackett London.

04 de setembro de 2020 | Rita Silva Avelar
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Londres, Sloan Square, 19 de setembro de 2019. O ponto de encontro, o café Colbert’s, situa-se na zona de Chelsea, junto ao The Royal Court Theatre, o proclamado teatro dos escritores, na Sloan Square. No interior deste bistrô parisiense decorado com posters vintage de cinema, Jeremy Hackett (1953, Inglaterra), fundador e chairman da Hackett London, aguarda-nos, pontual. Jeremy, ou Mr. Classic, este último o nome que deu a uma das suas crónicas, elegeu um local tremendamente acolhedor para este pequeno-almoço informal. O sorriso, desde logo afável, quebrou qualquer sensação gélida, inerente à atmosfera londrina, que houvesse no ar. Jeremy Hackett é tal como esperávamos. Um homem elegante, educado, com sentido de humor e uma sensibilidade rara para os ditos seres humanos, demonstrando sempre saber a sua vez de falar com uma escolha de palavras delicada. Um perfil comum? Pelo contrário. Sobretudo nos dias que correm, diríamos que é raríssimo. "No fim de semana passado eu estive num evento muito popular, o Goodwood Revival", começa por dizer, preparando-se para narrar as peripécias vividas naquele festival de carros de corrida clássicos que recria as décadas de 1930 a 1960. "É um escape nostálgico que dura umas horas."

Clifton, Bristol, início dos anos 60. Apesar de ser um homem naturalmente à frente do seu tempo, a nostalgia é bem capaz de ser uma das palavras que mais paira sobre Jeremy Hackett enquanto o observamos a recordar a sua própria história. "É muito provável que tudo o que eu venha a dizer esteja online", brinca. A verdade é que não está, o que valida o que descobriríamos mais tarde, durante as escassas horas que convivemos: é um verdadeiro storyteller. Tendo passado os primeiros seis anos de vida num orfanato, idade em que foi adotado, Jeremy Hackett cresceu em Bristol. "Foi nessa altura que eu tive o meu primeiro fato para a primeira comunhão. Recordo-me de ser feito em tweed irlandês e de eu ir ao alfaiate e de especificar exatamente o que queria. Notei que o alfaiate tinha um pequeno bolso [ticket pocket) e soube de imediato, também, o que eu queria no meu fato", conta. "Na escola, só me interessava por História [de Inglaterra] e por Teatro. Matemática e Física, tudo o que se relacionava com esse universo, era inútil porque eu não gostava. Nessa altura, eu já tinha vários trabalhos. Distribuía o jornal, antes da escola, aos sábados trabalhava num talho e à tarde ia às aulas de teatro que frequentei durante anos. Eu queria ser ator. Para ser honesto, muito do que eu faço hoje tem uma boa dose teatral envolvida. Entramos pela porta, de manhã, e o espetáculo começa. É um pouco teatral. Aos 16 anos, consegui um trabalho numa alfaiataria, aos sábados, e o alfaiate acabou por dar-me trabalho durante dois anos porque, entretanto, desisti da escola, obviamente ela não era para mim." O seu caminho, como se veio a revelar, seria outro.

Londres, Savile Row, início dos anos 70. Jeremy Hackett deixa a pequena vila de Clifton em busca da sua vocação, em Londres, e acaba por fazê-lo com destreza. "Eu sempre quis ir para Londres. Quando era pequeno recordo-me de ir às compras a Kings’s Road. Quando cheguei a Londres fui à loja Village Gate para uma entrevista e consegui trabalho. Eram 40 pounds por semana – o que eu considerei ser fantástico – até chegar a Londres e descobrir quão cara era essa cidade. Estive dois anos lá até me empregar em Savile Row [na loja do icónico alfaiate John Michael Ingram], onde o meu trabalho era apresentar os clientes aos alfaiates. Isto porque, por vezes, os alfaiates são muito bons costureiros, mas não são necessariamente bons comerciais. Descobri que era bom a encorajar um cliente a investir num bom fato. Acontecia, muitas vezes, o cliente chegar e pedir um fato igual ao que eu tinha vestido, o qual, geralmente, era horrível." Tinha, então, 21 anos e aprendeu tudo o que conseguiu nos seguintes três. "Eu não me considero um alfaiate. Mal sei coser um botão [risos], mas eu sei como é que as coisas se devem parecer e como devem ser feitas para estarem perfeitas."

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Antes de fundar a Hackett London, uma aventura que chegaria no início dos anos 80, Jeremy Hackett abriu uma loja de calçado com Ashley Lloyd-Jenning. "Vendíamos os melhores sapatos. Mas estávamos na área errada, que era Covent Garden, ainda antes de toda a gente ir para Covent Garden. Aquilo era totalmente desértico. Perdi o meu dinheiro nesse negócio e tive de vender o meu apartamento", revela com franqueza. Foi nessa altura que Mr. Hackett se tornou um verdadeiro caçador de tesouros nos mercados de rua londrinos, evidenciando, mais uma vez, o seu olho clínico para a moda. Quando esteve em Lisboa para inaugurar a sua loja na Avenida da Liberdade, delirou com um prendedor de gravata que comprou num mercado de rua, que se realizava naquela artéria, por aquele ser na forma de um chapéu de chuva para homem que é, coincidentemente, um dos símbolos da marca que detém. "Eu costumava percorrer todos os mercados de Londres. Primeiro era uma questão de divertimento ao procurar coisas para mim, mas, mais tarde, os meus amigos pediam-me coisas específicas. Uma manhã, no mercado de Portobello, encontrei um parisiense que comprava as mesmas coisas que eu. Desafiou-me a comprar para ele e começou a ir a Londres, uma vez por mês, para me comprar diretamente as coisas. A certo ponto, eu comecei a ir a Paris com o carro cheio de tralha em direção ao Flea Market [antigo mercado de rua, junto à estação Porte de Clignancourt] e vendia-lhe tudo." Numa dessas buscas por achados únicos encontrou umas botas de cabedal timbradas com as iniciais de um membro da realeza britânica, as quais nunca chegaram a ser concluídas ou entregues e que foram vendidas ao desbarato. Mais tarde vendeu-as por um valor considerável.

Londres, King’s Road, bairro de Chelsea, 1983. Estava-se a viver em pleno os anos 80. Nessa altura, Jeremy Hackett decidiu fundar o seu próprio negócio e abriu uma loja em segunda mão no número 65B, em New King’s Road. "Como eu tinha ‘olho’ para escolher as peças, entrar nessa loja era como entrar numa loja de vestuário masculino lustrosa. Estava tudo limpo, etiquetado, arrumado. Vendíamos todo o tipo de roupa a preços muito apelativos e com grande margem de lucro. Durante seis meses não tivemos um nome para a loja porque a anterior loja tinha o nome Lloyd-Jennings, mas acabámos por chamar-lhe Hackett. O resto é história." Em 1983 surge, assim, a primeira loja de que há registo na génese da Hackett London. "Os nossos primeiros clientes eram jovens profissionais que viviam na área e que trabalhavam como advogados ou médicos. Era uma clientela muito particular. Não tinha nada a ver com moda, ainda que muita gente desse círculo nos procurasse, como Ralph Lauren, um bom cliente durante os primeiros anos. A ideia era produzir fatos clássicos, com boa qualidade, caros, mas não exageradamente caros. Era uma espécie de ready-to-wear Savile Row. Eu usava os mesmos materiais, ia às fábricas, escolhia os tecidos e depois pedia exatamente o que queria. Acabámos por ganhar uma boa reputação no registo formal. Os casacos tweed eram um best-seller e criámos fatos icónicos em tweed." Hoje, um fato Hackett London feito à medida e manualmente, usando técnicas tradicionais, pode levar até 80 horas de trabalho meticuloso para ser concluído. Além das peças mais formais, a marca também tem propostas ready-to-wear mais descontraídas. "No início, eu não tinha um plano de negócio ou de marketing. Nem sequer tinha dinheiro. Mas a ideia era boa", brinca sobre a génese da Hackett London. "Quando a marca surgiu, as pessoas costumavam pensar que eu a tinha herdado do meu pai ou do meu avô", revela quando o questionamos sobre como se manteve fiel ao conceito da marca ao longo dos anos. "Porque parecia uma marca que existia desde sempre. A palavra ‘marca’ tem sido usada até à exaustão. Cria-se uma página online e acha-se, de imediato, que se tem uma marca. Uma marca tem a ver com construção e não acontece durante a noite. Não tem de ter uma história, mas tem de ter relevância e um ponto de vista real."

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Lisboa, 21 de novembro de 2019. Um par de meses depois do meu encontro com Mr. Hackett, não evito um sorriso de cumplicidade à medida que folheio as páginas do livro Isle of Dogs (publicado em 2018 por ter sido o Ano do Cão no calendário anual chinês), que acaba de aterrar na minha secretária. Jeremy Hackett é, de facto, um homem de princípios, pois não se esquecera do meu fascínio ao passar os olhos pelos seus livros no interior da boutique Hackett London, em Sloan Street, e enviara-me um dos seus. Isle of Dogs não só narra a sua paixão por cães da raça Spaniel de Sussex, a qual começou, há 20 anos, com a adoção de Charley e que continua com os seus fiéis companheiros Muffin e o filho deste, Harry. Jeremy Hackett também revela a sua adoração pela Fotografia. É um fotógrafo exímio, mas modesto. "Segue-me no Instagram?", perguntou-me durante o pequeno-almoço em que nos conhecemos. Na sua conta nessa rede social partilha diariamente fotografias tiradas por si, muitas delas com hashtags que contam histórias, como #shotfrommycab, tiradas de janelas, em viagens de táxi. Será também comum ver retratos de Harry e de Muffin a posar para a câmara ou fotografias de modelos de carros de colecionador da Aston Martin (carros é uma das suas paixões e a Hackett patrocina a Aston Martin Racing). E, claro, várias fotografias criativas de camisolas em colaboração com equipas e com eventos desportivos, como, por exemplo, a equipa de polo britânica. O lado humano, esse, está sempre presente nas suas fotografias. Na manhã do nosso pequeno-almoço Jeremy Hackett tinha acabado de fotografar mãe e filho sentados, lado a lado, num banco. "A mãe mexia no telemóvel, o filho lia! Uma visão rara." A hashtag #araresight seria precisamente a eleita para acompanhar a fotografia que, horas mais tarde, havia de publicar no Instagram.

"Quando tiro fotografias, tento enquadrá-las numa história. E quando coordeno peças de roupa, faço-o como uma história ao visualizar a pessoa que tenho à minha frente. Algumas vezes tiro fotografias a pensar que as roupas ficam muito bem em determinada pessoa para depois recriar o look. Prefiro fazer isso do que entrar em lojas em busca de inspiração porque uma vez que está numa loja é porque alguém já o fez. É por isso que eu aprecio tanto o vintage porque quando encontramos algo podemos pensar em recriar a peça. Não sou capaz de passar por uma loja em segunda mão e de não entrar. É a emoção da procura (…). Hoje o vintage tornou-se uma espécie de eufemismo aceitável para designar roupas em segunda mão", brinca. "Além disso, tudo se move a um ritmo tal que o que comprámos na semana passada é quase vintage."

Na atualidade, a Hackett tem 160 lojas espalhadas pelo mundo e tornou-se uma referência incontornável no vestuário formal e clássico, procurada para todo o tipo de ocasiões. Apaixonado por decoração de interiores, Mr. Hackett evidencia o seu bom gosto na estética elegante e luxuosa do interior das suas lojas. Nas portas de entrada há um pormenor que liga todos os espaços: uma maçaneta em forma de chapéu de chuva para homem, outro sinal da graciosidade Hackett London, que oferece fatos por medida para todos os gostos e idades. "Os jovens britânicos quanto têm um evento especial como a Henley [Royal Regatta] ou como a [Royal] Ascot querem vestir-se de forma adequada e procuram-nos. Também já aconteceu termos um senhor a entrar pela loja a dizer que se ia casar no dia seguinte e perguntando o que deveria usar [risos]."

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Londres, Savile Row, 21 de novembro de 2019. Quase quatro décadas depois de ter estagiado em Saville Row, uma das artérias de referência na alfaiataria na zona de Mayfair, Jeremy Hackett inaugura uma nova loja no número 14. Este edifício com belíssimos traços georgianos pertenceu a Sir Hardy Amies (icónico alfaiate britânico também responsável pelo guarda-roupa de Isabel II), transformando-se agora na morada desta imponente e luxuosa loja que se divide em quatro andares e que destaca, além do mais, o serviço Made to Measure. "Nunca imaginaria que, mais de 40 anos depois, eu teria aqui uma loja. Eu costumava adorar Savile Row, passava muito tempo a apreciar as janelas e a ver os costureiros. Era uma atmosfera que me fascinava." Na loja nada é deixado ao acaso. Por ser uma cliente habitual de Sir Hardy Amies, Isabel II tinha o privilégio de lhe ser atribuída uma casa de banho para seu uso exclusivo. Evidenciando, mais uma vez, a atenção dada aos pormenores, Jeremy Hackett restaurou aquele espaço tão privado chamando-lhe O Trono e adornando as paredes com fotografias de Sua Alteza Real. Quem visitar o número 14 dessa rua será sempre recebido por um mestre de alfaiataria que se encarregará de todos os pormenores técnicos, mas também é muito provável que tenha a sorte de receber a consultoria de Jeremy Hackett, já que este nunca se afasta durante muito tempo do sítio que o faz sentir-se realizado. Encontrá-lo no interior de uma das suas lojas não será um caso raro, mas será, decerto, um acaso feliz. Perguntar-lhe, no final da nossa conversa, como é que a noção de cavalheiro evoluiu ao longo dos anos era uma curiosidade por satisfazer. "A questão é que ninguém fala sobre isso. É uma noção romântica que vem das pessoas fora de Inglaterra, sobre o cavalheiro inglês. Vestir-se como um cavalheiro é uma pequena parte de ser-se um cavalheiro, pois a pessoa pode estar brilhantemente vestida e ser-se alguém muito pouco educado. Tem tudo a ver com ter-se consideração pelos outros, ser-se humilde para com as pessoas em condições menos privilegiadas, ser-se, até, um pouco autodepreciativo e ter-se sensibilidade em relação aos outros sem ser-se autocentrado." Expressão britânica ou não: obrigada, Mr. Jeremy Hackett, por ser um verdadeiro gentleman.

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