Quando Eric Dier precisa de pôr em perspectiva os momentos mais desafiantes da carreira, o jogador do Tottenham Hotspur e da selecção inglesa relembra a história do seu avô que conseguiu sobreviver ao despenhamento de um avião militar da Royal Air Force. Ted Croker, jogador famoso do Charlton Athletic e secretário da Football Association, foi projectado a 15 metros quando o avião bimotor de treino em que seguia registou uma avaria no momento em que ganhava altitude, numa situação de pouca visibilidade, para não colidir com o topo do monte Kinder Scout, no Peak District National Park, em 1945. Ainda se podem ver alguns destroços no local da queda. "Tenho um livro [Dark Peak Wrecks] que fala desse assunto", diz Dier. "Foi uma situação incrível. Ele partiu os tornozelos, mas os outros pilotos [um em treino, como Croker, e o instrutor, que estava a pilotar, na ocasião] ficaram severamente feridos e o meu avô rastejou ao longo de uma grande distância para pedir ajuda." Fez mais de cinco quilómetros descalço sob um frio gélido, com um profundo golpe na cabeça, que precisou de 88 pontos para ser cosido, e uma lesão nos tornozelos de tal modo grave que Croker teve de ficar hospitalizado nos três meses que se seguiram. A pensar somente nos colegas feridos, o avô de Dier embrulhou-os num pára-quedas de seda da RAF para os manter quentes e partiu. Após horas a arrastar-se sobre pedras duras de arenito, turfeiras e riachos gelados, Croker alcançou uma casa rural perto de Edale, forneceu a informação necessária para ser transmitida à equipa de resgate e desmaiou. Os seus companheiros foram salvos e Croker foi condecorado com a King’s Commendation for Brave Conduct. Croker, cujo primeiro nome era Edgar, passou a ser tratado por "Ted" quando se alistou na Força Aérea e um dos nomes de Dier é Edgar, em memória do avô.
A força moral de Croker é também uma das razões pela qual Dier é um entusiasta embaixador de novas iniciativas para ajudar os veteranos de guerra que são levadas a cabo, actualmente. A Fundação Tottenham Hotspur está a trabalhar com a Sporting Force, uma organização de beneficência de veteranos e ex-militares, no sentido de recrutar antigos soldados para preencher 50 vagas como assistentes de recinto, para receber, dirigir e cuidar dos espectadores no seu novo estádio. "Há uma estatística que mostra que os veteranos militares têm duas vezes mais dificuldade de arranjar emprego que um civil", afirma Dier. "Uma das coisas maravilhosas do novo estádio, a par dos fantásticos eventos desportivos que lá terão lugar, é a ajuda que vai prestar à comunidade local, das mais variadas formas, e dar emprego a homens e mulheres que serviram o país e deixaram a vida militar. É notável o que o clube está a fazer. É a maior contribuição, por parte de um clube da Premier League, a este tipo de organizações de apoio aos veteranos. É bom para o futebol prestar ajuda. O que os militares fazem é incrível. Nem consigo imaginar pelo que passam durante uma guerra."
Dier deixou o Estádio de Wembley no dia 7 de Março de 2018, à noite, com uma lesão no cotovelo e o sonho de vencer a Liga dos Campeões destruído, mas, inevitavelmente, minimiza estas grandes frustrações quando as compara ao que outros suportam. Esperava estar recuperado quando, a 11 de Março desse ano, viajasse para Bournemouth e sabia que o Tottenham teria a competência e determinação para compensar o revés sofrido face à Juventus. "Quando estamos envolvidos no mundo do futebol é como se permanecêssemos numa bolha e, algumas vezes, temos de nos afastar e perceber que há muito mais na vida. Vimos as notícias terríveis do capitão da Fiorentina [Davide Astori] que faleceu [a 4 de Março de 2018, aos 31 anos, devido a uma paragem cardio-respiratória durante o sono] e isso leva-nos a pôr tudo em perspectiva. A comunidade futebolística uniu-se para homenagear o capitão da Fiorentina [incluindo o minuto de silêncio, em Wembley]. Uma das coisas bonitas do mundo do futebol é unir-se nestas ocasiões. Sinto arrepios só de falar nisso." Refere o apoio a Ryan Mason, o seu antigo colega de clube que foi forçado a retirar-se depois de uma lesão na cabeça. "O que aconteceu ao Ryan é terrível. Falo muito com ele e o que o Petr Cech tem feito é admirável, visitando-o, falando-lhe de uma experiência similar por que passou", diz Dier. "Se pensarmos no jogo entre a Inglaterra e a França, disputado após os ataques terroristas [de Paris, em 2015], temos de admitir que foi uma noite incrível para se estar em Wembley porque mostrou a força da solidariedade."
Com pessoas firmes como Dier no balneário do Tottenham, dissabores como a eliminação da Liga dos Campeões não abalam a camaradagem.
Dier está a ler um livro sobre a selecção de râguebi da Nova Zelândia, denominada All Blacks, que tem a famosa política de não admitir "convencidos". "Também no Tottenham é assim", explica. "É importante não sermos sempre uns tipos porreiros no campo, mas fora dele muitos de nós são pessoas boas, humildes, trabalhadoras. Temos alguns belgas, franceses e espanhóis, mas não se mantêm à margem dos outros. Não formam claques. Uma das coisas bonitas no Tottenham é que toda a gente se mistura e combina. Outra realidade interessante no grupo é conversarmos acerca de tudo. Gostamos muito de debater assuntos." Então a conversa não é só acerca de roupas e de carros? "Não! Nunca! Algumas vezes falamos de música, mas não de roupas e de carros. Conversamos sobre temas do dia-a-dia, acerca do Brexit e de quando aquela criança apareceu com aquela camisola com capuz [a publicidade controversa da H&M que mostra um menino negro com uma camisola que ostenta a frase coolest monkey in the jungle. Falamos muito sobre tecnologia, recursos naturais e carros eléctricos. Debatemos o vídeo-árbitro [VAR]. Tivemos uma situação complicada com o VAR, no jogo em Rochdale. O VAR é algo que pode ser positivo, mas não gostaria que destruísse a emoção que faz do futebol algo tão especial, sobretudo na Liga Inglesa. Há pouco, vi um jogo entre o Sporting e o Porto em que havia muitas paragens, muitas faltas, fosse o que fosse que acontecesse em campo, o árbitro apitava. O que torna a Liga Inglesa única é ser tão fluida, a velocidade é espantosa, e não quero que nada a obrigue a abrandar o ritmo. Por outro lado, temos de aceitar a tecnologia porque ela existe e está a impor-se. Só espero que a implementem da maneira correcta." No que diz respeito às conversas, há muito por onde escolher no menu do dia do refeitório do Tottenham. "Conversamos muito sobre a independência de Barcelona. Estivemos em Barcelona, logo após os acontecimentos. Fomos para Madrid e havia bandeiras de Espanha nas janelas, em todo o lado, e, depois, quando chegámos a Barcelona, vimos bandeiras da Catalunha nas janelas, também por todo o lado. Os jogadores têm tanto sobre que falar e tanto a dizer."
Os interesses de Dier são vastos, incluindo arquitectura e fotografia, e, após inúmeras sugestões do fotógrafo Marc Aspland, do The Times, foi à Hayward Gallery, em Londres, para ver uma retrospectiva do fotógrafo alemão Andreas Gursky. Curioso acerca da vida, Dier é uma boa companhia e a sua voz revela, por vezes, uma interessante inflexão que denuncia os seus primeiros anos na Academia do Sporting, com uma pitada do falar culto da cidade de Cheltenham, à mistura com os maneirismos de Dele Alli. "Sou bastante calmo, algumas vezes demasiado descontraído", diz Dier, rindo-se. "Foi assim que fui criado. Tenho cinco irmãos, rapazes e raparigas, e, por isso, em casa não sou tão calmo. Quando jogamos a qualquer coisa, a calma desaparece. Ontem, estive a jogar PlayStation com o meu irmão e a minha namorada, que estava presente, não aguentou. Teve de sair de casa porque o jogo se tornara muito competitivo. O meu pai [Jeremy Dier, antigo jogador de ténis britânico] nunca nos deixou ganhar a nada até que o merecêssemos. Nunca nos deixava ganhar. Ele sabia que chegaria o dia em que nós conseguiríamos ganhar-lhe, por isso, usufruía as suas vitórias enquanto podia. Era uma boa forma de educar porque me obrigava a trabalhar mais para conseguir ganhar-lhe a qualquer coisa."
Quando saiu do Sporting, em 2014, para integrar a equipa do Tottenham, a sua capacidade competitiva levou a que pusessem Dier a jogar como defesa central, em 2015, na final da Capital One Cup, durante o seu duelo com o jogador do Chelsea, Diego Costa. "Adoro jogar contra jogadores como ele. É divertido. Ele pode não dizer o mesmo, mas gostamos um do outro", afirma. "A pior coisa que se pode fazer a alguém como o Diego Costa é tentar ser seu inimigo. A melhor coisa é ser seu amigo e instigá-lo, ao mesmo tempo. Foi isso que fiz. Esse foi um jogo muito importante para eu provar que podia jogar àquele nível, mas perdemos, portanto…" Depois, Mauricio Pochettino [na época treinador do Tottenham] pôs Dier a jogar no meio-campo, posição onde já aprendera a disciplina táctica, com Jesualdo Ferreira, no Sporting.
"Michael Carrick foi, provavelmente, o melhor jogador inglês a jogar nesta posição. Eu tive a sorte de treinar, algumas vezes, com ele na selecção inglesa e considerava-o incrível. Ele tinha um estilo diferente dos outros, mas era algo necessário. Gerrard, Lampard e Scholes eram fantásticos, corriam para trás e para a frente, demonstrando uma condição física impecável e marcavam golos, criavam oportunidades, faziam tudo."
Sobre o amigo Dele Alli diz que "está no seu melhor quando corre, quando não pensa, quando confia nos seus instintos. Tudo se desenrola e é o que faz dele tão bom. E o que faz dele tão bom? Tudo. As pessoas não vêem, mas o que faz sem a bola dentro do campo é importante: pressiona, recupera a bola e corre atrás de lances perdidos. Essa é a beleza do Dele, tanto como os golos, a técnica ou passar a bola por entre as pernas dos adversários [o passe conhecido na gíria por ‘cueca’ ou, menos sugestivo, mas talvez mais elegante, ‘túnel’]." E os ‘mergulhos’ para o chão? "Sim, a questão dos ‘mergulhos’. Penso que estão a exagerar um pouco quando o criticam por isso. Obviamente, houve alguns casos, mas todos os atacantes fazem o mesmo e também foram alvo de críticas. O Dele pode não ser sempre perfeito, não toma sempre a melhor decisão. (...) Tudo o que o Dele faz está constantemente sob o foco das atenções, de modo que quando se manda para o chão a atenção redobra, o que considero injusto." Mandar-se para o chão não será fazer batota? "Acho que o Dele sabe o que está a fazer. Ele não tem ponta de maldade. E, definitivamente, não é um batoteiro. Só quer ganhar." São amigos chegados, em parte porque Alli é atraído por aqueles que tiveram uma vida estável e que foram educados com o amor que ele nunca teve. "Essa é uma das coisas bonitas no futebol: eu vim de onde vim e o Dele veio de onde veio. E aqui estamos nós, juntos", diz Dier. "Temos personalidades completamente diferentes. Penso que os opostos se atraem. E, ao mesmo tempo, damo-nos muito bem. O Dele tem uma aura que nos leva a aproximarmo-nos dele. É, simplesmente, um rapaz de quem é fácil gostar. O que é maravilhoso no Dele é não ligar às aparências… Mostra-se tal como é. Nunca muda. Continua a mesma pessoa que conheci. Essa é uma coisa fantástica nesta equipa. O mesmo se passa com o Harry [Kane]. Toda a gente fala dos seus golos, mas é o fruto do seu trabalho, a humildade e a agressividade que tornam o Harry incrível."
Artigo originalmente publicado na edição nº 109 da MUST
Exclusivo The Times Magazine/Atlântico Press
Tradução Erica Cunha Alves