Conversas

Cardoz: "Podemos estar perante uma potencial extinção ou escravização dos seres humanos"

O trabalho do artista plástico Cardoz tem como objetivo chamar a atenção para os efeitos nocivos da tecnologia e das redes sociais na vida das pessoas. A nova exposição "Geppetto's New Generetions" pretende ser uma chamada de atenção.

Foto: DR
27 de outubro de 2023 | Madalena Haderer
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Cardoz, street name de João Cardoso, é um jovem artista plástico que se dedica a consciencializar o público para a fragilidade da condição humana e para a influência perniciosa da tecnologia nas nossas vidas: smartphones que nos fazem interessar mais por pessoas que não conhecemos e que vivem a milhares de quilómetros, do que pelos nossos amigos, familiares e vizinhos. Uma tecnologia que existe para nos conectar e que, paradoxalmente, tem o efeito oposto. Paramos para fotografar e postar as flores, mas não as cheiramos. Um brunch num sítio especial não tem nada de especial se não puder ser partilhado com seguidores.

Cardoz, que pertence à última geração que cresceu a jogar à bola e a brincar com os amigos na rua, vê esta tendência com pessimismo e até com um pouco de fatalismo, acreditando que o desenvolvimento tecnológico pode contribuir para a eventual extinção do ser humano. Esforça-se, por isso, para que o seu trabalho motive uma reflexão sobre o estilo de vida das sociedades ocidentais. Para tal, conceptualizou e deu vida a Creature, uma figura de aspeto metálico que é presença habitual nas suas exposições, e que representa a fragilidade do ser humano.

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Tirou o curso de Ilustração na Universidade Metropolitana de Londres e, quando regressou a Portugal, montou o seu próprio estúdio, o CO-OP, em Cascais, onde colabora com outros artistas independentes. Ao longo do seu percurso, apresentou exposições em cidades como Londres, Basileia e Madrid. Playing w/ Stupidity, a sua maior mostra até à data, decorreu durante o período da pandemia e procurou retratar a dependência do mundo online, numa altura em que a desinformação adquiriu maior relevo.

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A Must conversou com Cardoz, por email, a propósito da sua mais recente exposição – Geppetto’s New Generations – que retoma a preocupação com o efeito da tecnologia e das redes sociais nas nossas vidas, e que é possível visitar até dia 29 de outubro, na Coup Gallery.

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Na sua obra transparece toda uma preocupação com os efeitos perniciosos da tecnologia na vida do ser humano. E, no entanto, o Cardoz nasceu em 1995, é de uma geração que já cresceu com a internet e que, normalmente, não tem tanto este sentimento. De onde lhe vem esta preocupação?

Apesar de ter crescido com tecnologia à minha volta, cresci num ambiente urbano, onde a maior parte do tempo livre era passado na rua, a brincar com outras crianças. Infelizmente, isso é algo que já não se vê com frequência. Por outro lado, a tecnologia ainda não tinha tomado as proporções atuais. Já existia internet, mas não tínhamos a facilidade que temos agora de estar ligados a tudo e a todos ao mesmo tempo. Só mais tarde, com as redes sociais, que trouxeram consigo uma lógica de partilha diária compulsiva (dos momentos bons, maioritariamente), é que começámos a ver alguns dos impactos que a tecnologia tem no dia-a-dia, especialmente das gerações mais novas. A comparação sistemática com os outros ou a noção de que o nosso valor enquanto seres sociais está indexado à quantidade de pessoas que nos "seguem" são dois exemplos simples disso. A minha preocupação deriva da ideia de que se o desenvolvimento da tecnologia é exponencial, também o é o impacto – positivo e negativo – que esta tem na nossa vida.

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Do seu ponto de vista, o que é que o ser humano pode fazer para equilibrar estes dois potenciais da tecnologia: prosperidade e contribuição para a extinção da raça humana?

Acho que existem forças opostas. Se, por um lado, temos pessoas a trabalhar para que a tecnologia beneficie a nossa qualidade de vida (e há muitos exemplos disto), por outro há outras tantas que – se calhar sem terem noção – estão a criar utilizações para a tecnologia que podem levar à nossa extinção. Trata-se, portanto, de um jogo de forças, com muitos interesses à mistura.
Quero acreditar que se conseguirmos, enquanto sociedade, trazer mais consciência ao desenvolvimento tecnológico e respetivo impacto que tem nas nossas vidas possamos encontrar a chave para esse equilíbrio entre ameaça e prosperidade.

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Para si, quais são os aspectos mais perigosos da tecnologia? E como podemos combatê-los ou minorá-los?

Creio que o aspeto mais perigoso da tecnologia é a possibilidade de virmos a criar uma espécie superior aos seres humanos. Se olharmos para a forma como nos relacionámos com os animais no passado e partirmos do princípio que esta nova espécie pode mimetizar esse comportamento, no limite, podemos estar perante uma potencial extinção ou escravização dos seres humanos. Esta é, naturalmente, uma ideia muito fatalista, mas que, "se tudo der para o torto", temo mesmo que possa vir a acontecer. Na minha opinião, é fundamental encontrarmos um equilíbrio entre a ameaça e a prosperidade, trazendo mais consciência ao desenvolvimento tecnológico. Só assim poderemos evitar que um cenário destes se torne realidade. 

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A sua nova exposição, "Geppetto’s New Generations", pretende chamar a atenção para a forma como a tecnologia alterou a nossa forma de socializar na vida real. Pode falar um pouco sobre isso? Sobre a intenção e as ideias por detrás da exposição?

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Os ecrãs são hoje uma extensão do nosso corpo. A proliferação dos dispositivos digitais, juntamente com as redes sociais e outros aplicativos, tem vindo a transformar o modo como interagimos com o mundo. Se, por um lado, abre horizontes, o que é positivo, por outro, cria uma barreira que nos impede de estarmos presentes e de contemplarmos o que está à nossa volta. Com esta exposição quero chamar a atenção das pessoas para a forma como a tecnologia desvirtuou a socialização na vida real e como as inúmeras possibilidades de conexão que existem atualmente levam, paradoxalmente, à desconexão com os outros, connosco mesmos e com o meio que nos envolve. A intenção é também satirizar a tecnologia representada pelas Creatures, que habitualmente têm um corpo metálico e robótico – e são as personagens principais do meu trabalho há cerca de cinco anos –, ao transformá-las em bonecos de madeira. Desta forma, estamos a afastar a figura da Creature de uma perspetiva mais artificial e a trazê-la para uma realidade mais humana e natural.

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O que é que significa o nome: Geppetto’s New Generations?

2023 marca os 140 anos da história do Pinóquio e do seu criador Gepeto. Na verdade, esta exposição poderia muito bem ser da autoria do Gepeto, já que, tal como ele, quisemos humanizar a minha Creature ao transpô-la para o mundo físico e em madeira. 

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Porquê criações de madeira? E como é que propõe que estas criações estimulem uma reflexão sobre como a tecnologia alterou as relações interpessoais?

As criações de madeira representam uma ligação ao mundo real que ainda não foi desvirtuada pela tecnologia. A aparência metálica e robótica que a Creature tem originalmente, e que pretende consciencializar-nos para a fragilidade da condição humana perante o desenvolvimento tecnológico, ganha aqui uma forma mais natural. Como se nos tivéssemos apercebido que, afinal, o caminho que estamos a trilhar não é o mais certo e precisássemos de dar um passo atrás para encontrarmos outra direção que nos permita ser mais humanos. No fundo, é essa a mensagem que quero passar: pormos a tecnologia um pouco de lado, voltarmos a conectar-nos uns com os outros, cara a cara, e estarmos mais presentes e em contacto com a Natureza. Importa também notar que, na perspetiva técnica, trabalhar a madeira sempre me interessou e nunca tinha tido a oportunidade de o fazer. Foi uma experiência muito enriquecedora e que não teria sido possível sem o grande apoio do João Erse da AKTO Studio [com quem colaborou para desenvolver a exposição].

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Na sua opinião, como é que podemos fazer o caminho de volta para o outro? Um caminho que volte a conectar-nos na vida real?

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Receio não ter a fórmula, mas acredito que o primeiro passo será desenvolvermos estratégias para deixarmos de estar tão ligados ao mundo online. Contrariarmos a tendência de ser ávidos consumidores do que se passa na suposta vida das pessoas que "seguimos" nas redes sociais e passarmos a acompanhar mais proativamente a vida das pessoas que estão à nossa volta. Pensarmos em dedicar as horas de scroll do feed nas redes sociais a encontros com pessoas, a estarmos a sós com a Natureza, ou os dois.

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