O Canalha acabou de abrir e está sempre cheio, mesmo ao almoço. Consta que é longa, mas não impossível, a lista para marcar mesa, por isso não é de estranhar encontrar outro chef em alegre bravata na pequena sala luminosa. João Rodrigues está debruçado no balcão em lioz rosa maciço que atravessa a sala e a delimita da cozinha, a mesma mármore simples e cheia de personalidade do tampo da pequena mesa onde nos sentamos e nos transporta para as tradições mais portuguesas. O chef equilibra distraidamente uma caneta na orelha, como os antigos merceeiros, e os seus olhos muito claros estão focados no empratamento. O ambiente é simples e cuidado, adoravelmente descontraído, como nos bons restaurantes de sempre, onde chamamos os empregados pelo seu nome. Só podia ser assim o novo restaurante do ideólogo do Projecto Matéria - em parceria com parceria com a Paradigma - cujo lema é: "As pessoas são o mais importante." E os produtos criados com amor.
Já tinha feito brilhar a cozinha do Feitoria, em Lisboa, com uma estrela Michelin (desde 2011) quando resolveu proteger o património gastronómico nacional, dar protagonismo e mapear os bons produtores neste seu projeto sem fins lucrativos nascido em 2017, mais tarde apoiado pelo Turismo de Portugal e a Comissão Nacional da Unesco. O seu propósito é promover as boas práticas agrícolas e a produção animal com respeito e cuidado pela Natureza, e dinamizar iniciativas que ajudem a reforçar esta comunidade e rede de contactos e a cultura portuguesa. Por isso, dedicou este ano de 2023 a lançar este Canalha, também em conjunto com o grupo Paradigma, e a atravessar o país com a iniciativa Residência (idem), jantares rústicos em locais improvisados, 12 meses e 12 regiões, a começaram por Trás-os-Montes e a terminar num mergulho na Madeira. João Rodrigues nasceu e cresceu em Lisboa, mas tem um pé na terra e a cabeça nas nuvens, como todos os bons chefs de cozinha, que ele chama de cozinheiros. Por isso, não é estranho viciarmo-nos nas azeitonas temperadas e no azeite Monte dos Fuzeiros onde molhamos um pedaço de pão de massa mãe feito nesta cozinha aberta, dentro da qual palpita uma azáfama de refeições enquanto a música ambiente percorre os temas unânimes da pop portuguesa de António Variações a Ana Moura, de Rui Veloso a Peste e Sida.
Chega-nos à mesa uma feijoca com berbigão subtil e deliciosamente perfumada que adorámos, uma surpreendente salada russa alegrada com anchovas, às quais se segue uma deliciosa tortilha aberta de camarão, com cebola caramelizada, cebola seca, cebolinho e malagueta, e uma maravilhosa travessa de cogumelos selvagens que o chef pousa na nossa mesa sob o olhar curioso do casal estrangeiro ao nosso lado: "Lactários deliciosos", diz, pareciam acabados de colher de tão perfumados. A rematar, uma lula que se desfez-se na boca, cuidadosamente partida nas suas três texturas, e regada com manteiga de ovelha. Não provámos o raspado de porco ibérico, cortado muito fino e servido com batata palha, mas conta que é especial, assim como o bom e velho bitoque. Mas provámos o marmelo caramelizado com uma bola de gelado e uau. Quando João Rodrigues se senta para conversarmos, vem a comer a sua sopinha fumegante, mesmo a propósito das suas ideias de aconchego, do país e do seu novo restaurante de fine dinning que vai inaugurar 2025, o Monda.
Donde lhe vem este seu amor à cozinha e aos produtos nacionais?
Muita coisa deriva de gostar de comer, acho que as duas coisas são indissociáveis. E esse gosto pela comida devo-o ao meu pai e à influência que teve na minha educação. Não tenho ninguém ligado à área da restauração na minha família, mas o meu pai sempre gostou de cozinhar, cozinha muito bem, e sempre cultivou isso e sempre nos levou ao mercado, aquela coisa, sábado de manhã, em família. Lembro-me bem das sensações e dos cheiros e dos ruídos, éramos nós miúdos pequenos. Na altura, era o 31 de janeiro, ainda era praça a céu aberto e lembro-me que, muitas vezes, quando voltávamos, tínhamos de descascar favas e feijão e isso, o nosso pai entretinha-nos assim.
Tinham rituais de família na cozinha?
Somos quatro irmãos, três assim mais próximos, e a minha irmã mais nova que veio anos depois. São memórias muito vivas, como ir à caça e ir à pesca. Nunca pensei como é que isso se ia revelar na minha personalidade, mas houve sempre um fascínio pela comida e um prazer grande em estar à mesa com os amigos. Comecei há 24 anos atrás, mas nunca pensei na cozinha como uma profissão, nem fazia ideia do que é ser cozinheiro e trabalhar numa cozinha profissional. Na altura, queria seguir Biologia Marinha, mas nem cheguei a inscrever-me no curso, não ia por chamamento mas para não ficar fechado num escritório todos os dias ou ter um trabalho mais convencional. Queria estar mais envolvido com a Natureza, era mais por aí, na altura surfava, a ligação com o mar. Depois tirei um ano sabático e a música assumiu um papel importante na minha vida, tocava viola baixo. Mais tarde, por algum motivo, a minha irmã mais velha (vivíamos os quatro irmãos juntos, os meus pais foram viver para fora) perguntou, porque eu fazia coisas básicas em casa, já gostava de cozinhar, tinha prazer: "Já pensaste em fazer disto vida?" Fez-me um clique, fui saber se havia cursos de cozinha na Escola de Hotelaria de Lisboa e disseram-me que aquele era o último dia em que me podia inscrever: "Tem de se decidir agora se quer ou não". Foi um sim ou sim, e avancei, depois chamaram-me para fazer uns testes e fiquei.
Fala em liberdade e em ir para a Natureza. Depois de um trabalho exímio no Feitoria, quis sair da cozinha e vir para a rua e assim nascem o Projecto Matéria e, dentro dele, o Residência?
A cozinha permite-nos um pouco isso, permite-nos viajar, se nos predispusermos. A cozinha é o sítio onde fazemos acontecer. O que aconteceu com o Residência foi dizer, mais ou menos, que a cozinha é onde nós estamos. Mas não deixa de ser uma cozinha, mesmo que seja com fogo e poucos instrumentos, porque esta é muito mais do que quatro paredes.
O seu conceito de cozinha é muito mais alargado do que apenas um chef e as suas panelas.
Sim, é um conceito abrangente. A cozinha é de todos, todos achamos que cozinhamos e que sabemos muito de cozinha, todos temos um registo de sabor, todos temos a nossa verdade e não há uma verdade absoluta. E isso é sempre difícil de imaginar. Por isso, a cozinha é muito mais lata, nesse sentido, mais abrangente. Depois temos a cozinha física, e depende como a organizamos e operacionalizamos para correr bem e forte, mas isso já é o lado profissional da cozinha. Todos os lugares obedecem a regras diferentes, e isso vem com o tempo e a experiência. Eu já tive diferentes fases e tive sorte, na minha formação e na minha carreira, passei por tudo, ou seja não comecei num restaurante gastronómico, comecei em hotéis onde faz-se de tudo, dos banquetes à comida do staff e aos pequenos-almoços. Trabalhei em restaurantes de rua, trabalhei em restaurantes de peixe, até chegar a um restaurante com outras ambições. Mas sim, a cozinha para mim é algo de muito lato.
É um bocado como os corredores de velocidade e os corredores de fundo, os jornalistas de acontecimento e os repórteres que investigam, há momentos para estar na cozinha e outros para meter o nariz por aí.
E eu gosto de ambas as cozinhas, e sempre me testei em ambas. E este último ano foi mesmo isso: poder cozinhar com o que houver, basicamente. Nunca é totalmente assim, mas a ideia é essa. E hoje estás em casa, com todos os pormenores, uma brigada grande e toda a maquinaria. É como dizes. E aqui tudo é cozinha, são apenas estilos diferentes.
Quando fala neste ano, refere-se ao Residências que o fez andar país fora, no âmbito do seu Projecto Matéria, certo? Como foi a experiência?
Há todo um trabalho no Projecto Matéria que serve de base para tudo o resto. Este teve a ver com uma necessidade profissional de ir ao encontro da vontade que tinha de criar uma identidade própria para o restaurante onde eu estava [Feitoria, no Altis Belém]. É muito difícil, e talvez seja a coisa mais difícil, criarmos um cunho muito próprio e pessoal no restaurante onde estamos. Porque hoje a informação é tanta e estamos tão expostos a tudo e mais alguma coisa, é natural que estejamos a passar uma informação que, sem querermos e termos noção, já vimos em algum lado. A ideia era combater um bocadinho isso e tentar ir à procura de uma identidade. Para sustentar esta ideia, não fazia sentido usar produtos vindos de fora, ou usando produtos de fora que eles não tivessem alguma relação connosco. Era muito centrado numa ideia de portugalidade, e de uma portugalidade vista pelos meus olhos, por isso tudo o que usássemos teria de fazer sentido, as coisas tinham de estar bem alinhadas. E onde andam estes produtos com muita qualidade e produzidos em Portugal? Não precisavam de ser autóctones, mas produtores que têm um processo ético de produção, que não usam químicos, pessoas que são resilientes e apaixonadas, que empregam todo o seu eu naquilo que fazem. Isto, para mim, é a verdadeira sustentabilidade, é tentar que estas pessoas consigam continuar a fazer aquilo que fazem. Numa primeira fase, foi ligar a pessoas espalhadas pelo país, percebi rapidamente que toda a gente tinha mais ou menos a mesma dificuldade, e com uma dose de loucura pus-me a caminho, à procura, em conjuntos de 5, 7, 10 dias. Tenho a minha família e um restaurante para gerir. Obviamente, fazendo antes o trabalho de casa e, ao chegar lá, tentei aproveitar, fiz cerca de 20, 25 visitas, às vezes fazíamos sete visitas num dia, uma coisa quase impossível hoje. Foi muito extenuante, mas fui e comecei a conhecer e, cada vez mais, a afunilar, e depois os próprios produtores já se apontavam uns aos outros: "Aaaah, conheço não sei quem.". "Ok, numa próxima visita, juntamos uns 10 para valer a pena ir". E assim começou a acontecer, foi uma coisa espaçada no tempo, foram anos. E depois houve uma altura em que as pessoas souberam que estávamos a fazer isto e era toda a gente a ligar-me.
A ideia era trazer para a sua cozinha os melhores produtos, e os mais honestos.
A ideia foi sempre trazer estes produtos para a minha cozinha. Depois, claro, toda a gente: "Onde é que arranjaste?" E eu pensei: Bem, se toda a gente tem essa dificuldade, porque não criar um espaço que possa servir toda a gente e toda a gente possa ganhar, os produtores porque vendem e os cozinheiros porque têm o produto. Se todos trabalharmos juntos, a coisa cresce. Apresentei isto no Congresso dos Cozinheiros em 2017, e vieram ter comigo, muita gente: "És maluquinho, isso já se tentou fazer, é impossível, isto é Portugal". E eu: "Está bem".
E teve apoios de algum tipo?
Numa fase inicial foi com dinheiro próprio, eu e a Va, a minha mulher, que entrou nesta loucura comigo. Eu sou quase um operacional, ela é a gestora do projecto, hoje em dia é quem o pensa totalmente. Depois concorremos a um fundo do Turismo de Portugal para poder fazer o site, e temos muita gente que vai dando o seu contributo. A ideia era mesmo criar uma rede, uma comunidade, onde toda a gente pudesse participar e ajudar a construir, porque é um projeto para todos, sem fins lucrativos, é aberto, é serviço público, para quem quiser usar. Já não romantizamos tanto a ideia de que toda a gente vai ajudar a construir, porque há pessoas que ajudam, mas a grande maioria não quer saber, quer usar mas não quer dar, mas é assim mesmo, faz parte. Este foi o trabalho base. Depois conheci o país, conheci sítios, muita coisa.
Agora está a congeminar um novo restaurante.
Sim, vai chamar-se Monda. Se tudo correr bem, abre no final de 2024, início de 2025. Monda é o trabalho fundamental na agricultura, o trabalho manual. É retirar outras ervas, que podem não ser daninhas, para que a cultura que nós queremos cresça. É um trabalho duro e essencial na agricultura e é onde tudo começa. É um pouco a simbologia deste nome: esquecer o supérfluo e concentrarmo-nos no que queremos, e que tem que ver com as nossas mãos e o querermos fazer o trabalho por nós próprios. Esta é a ideia principal por detrás deste restaurante. Claro que percebemos, eu e os meus sócios, que haveria um hiato grande até isto acontecer, e começou por ser o Residência, com este mesmo pensamento por base, ou seja, mostrar que a cozinha é um acto de partilha, é de todos. E cozinhar em casa não é mais nem menos, cozinha é cozinha. E foi mostrar que podíamos atravessar o país durante um ano, cozinhar com as condições que encontrássemos, em sítios que não eram restaurantes, na sua maioria, ocuparmos esse espaço e entregarmo-nos completamente ao que havia. Produtos e vinhos locais. E assim fizemos, começámos em Boticas, em janeiro, um nevão terrível, quase 500 quilómetros para cima, foram três dias, correu muito bem, para nosso espanto tivemos cerca de 60 pessoas por dia, três dias estamos a falar de 180 pessoas, a irem até Boticas atrás de uma coisa destas. Foi quando percebemos que tinha pernas para andar e que tínhamos de ser fortes porque seriam muitos meses a andar. Fizemos norte a sul: Boticas, Melgaço, Douro, Tabuaço, Manteigas, Oliveira do Hospital, Figueira da Foz, Sangalhos, Idanha, Santarém, Lourinhã, Alentejo, Algarve, Açores, e acabámos na Madeira. Corremos o país todo, e fizemo-lo em faróis, castelos, igrejas, fábricas de lã, em todo o lado.
Tiveram algum episódio caricato?
Muitos. Em Viana fomos ver veados e apanhámos um dilúvio... numa carrinha de caixa aberta, cuecas encharcadas. Na Lourinhã, íamos juntar as pessoas na parte de fora de uma fortaleza abandonada, e estava um dia espetacular, no dia a seguir estava uma ventania, tivemos de ir para dentro da fortaleza para as pessoas não voarem. Depois não sabíamos se as mesas cabiam dentro da fortaleza. No dia a seguir era numa vila de pescadores, em Porto Pinheiro, e eles diziam que não íamos conseguir por causa do vento e no dia seguinte o vento acalmou. Ou seja, estivemos muito perto de ter vários ataques cardíacos, mas a coisa resultou e funcionou. Isto obriga a muito jogo de cintura e capacidade de mover logística, e a nossa estrutura era muito pequena, por isso houve muito boa vontade e alguma ajuda divina e a coisa resultou. Mas foi incrível, porque conhecemos muita gente e corremos o país todo e provámos muita coisa e fiquei a conhecer muito mais receituário. E juntámos uma comunidade à volta do projeto, até juntámos pessoas. Isto foi o Residência, que terminou agora, um pouco antes começou o Canalha, que é a segunda parte desta estratégia e, se tudo correr bem, culminará no Monda.
Pode já contar-nos segredos desse Monda?
Posso, não há grandes segredos. O Monda há-de ser um espaço muito pequenino, um restaurante para 20, 25 pessoas, fora de Lisboa, no Oeste, na Lourinhã. É uma zona muito rica em produtos e tem carisma, é um bocadinho selvagem e um bocadinho bruta, e esse lado mais inóspito era importante para este projeto, porque vai ver um pouco essa a ambiência. Estamos a 45 minutos de Lisboa, o que era fundamental, temos sete quartos e oito hectares, onde fazemos a nossa própria produção, de animais e agrícola. Estamos no meio de uma reserva e a 500 metros do oceano, numa localização absolutamente espetacular e queremos muito fazer parte daquela paisagem e viver muito a relação com a comunidade local. Há-de ser um sítio com um cariz muito pessoal e criativo, mas ao mesmo tempo com depuração, com produto, com verdade, por assim dizer.
A ideia de ficar a dormir depois de jantar é ótima, normalmente é ao contrário.
As pessoas não ficarão apenas a dormir, vão fazer parte de uma experiência. (risos)
Vão apanhar o que comem?
Quem sabe. Vai obedecer a uma dinâmica que é uma experiência imersiva.
Por falar em apanhar o que se come, reparei que esta carta do Canalha tem pouca carne.
Normalmente gosto mais de trabalhar peixe, temos algumas coisas de carne, não muitas. Depois temos produto na montra e naquele quadro lá ao fundo, ali sim há uma seleção de carnes, peixes e mariscos.
Sente-se um certo afastamento dos portugueses da sua cozinha. Por um lado, temos hoje um acesso maior à cozinha internacional, por outro vemos morrerem os nossos "tascos" tradicionais. Este seu Canalha quer resgatar isso?
Não temos essa pretensão, nem este é um restaurante tradicional, de todo.
Tradicional no sentido em que os sabores são muito portugueses. O que queria que fosse este Canalha?
Eu percebo, mas não queremos estar nesse espectro. É um restaurante de produto e é assim que queremos que seja conhecido. Que valoriza o produto, principalmente o português e se não for português, é ibérico e tentamos que se cinja à zona raiana, que tem muito para dar. E nunca estranhamos. Quando vamos a Espanha e comemos uma salada russa não a vamos estranhar. Ok, se calhar as anchovas estão mais fora, mas mesmo assim, tudo o resto faz sentido. Queríamos que este restaurante fosse um restaurante de bairro, onde as pessoas do bairro viessem, e as pessoas que vêm para aqui trabalhar pudessem almoçar, comer rapidamente aqui na barra e ir embora. Normalmente as pessoas deixam-se ficar, por isso já ninguém trabalha em Lisboa, são horas e horas e horas...
Contra a histeria atual dos turnos que nos obrigam a jantar a correr para ter mais rodagem, deixámos de poder usufruir dos lugares...
Sim, e isso é óptimo porque percebemos que as pessoas deixam-se ficar porque gostam de prolongar e sentem-se bem. E isso é o fundamental. Sim, queríamos prolongar esse estar e não ser um revivalismo, mas ocupar o espaço desses restaurantes que estão a desaparecer, e dar-lhe uma continuidade. É uma cozinha extremamente fácil, prazerosa, é simples, muito à base do produto. Ou seja, pode comer-se uma carne com batatas fritas e salada. Há pouco numa mesa pediram um bitoque: "Pedi um bitoque e um bitoque é isto: bife com ovo a cavalo e batatas fritas, isto eu tenho em qualquer lado." E eu disse: "Pois, mas isto é que é um bitoque." Não vou pôr petazetas ou fumo no bitoque, um bitoque é um bitoque, tenho muita pena, agora a carne é boa, as batatas são boas, o molho é bom e o ovo é bom, é essa a ideia. Algumas pessoas não compreendem, por eu ter vindo de um registro mais fine dining, por isso começámos por fazer o Residência, as coisas têm uma maneira de se mostrar. Conseguimos cozinhar em qualquer lado e com qualquer registo e isso, no fundo, (e agora vou ser um bocadinho "cagão", mas paciência) é o que também traça a linha de diferença entre alguém que é profissional e alguém que não é. Posso não ser exímio em tudo, mas consigo cozinhar sem nada, numa cozinha mais descontraída, como num sítio super controlado. Penso que é assim com quase todos os cozinheiros. As pessoas têm a ideia errada de que só fazemos quadradinhos e três ervilhas, e não sabemos fazer mais nada, oiço isto muitas vezes e não é verdade. E passámos disso para um projeto intermédio, o Canalha, e depois teremos o Monda que será outra coisa. Mas o Canalha quer ser esse sítio onde não há grandes salamaleques, os pratos e os copos são simples, a comida é simples, mas é confortável.
O sabor é muito o que é, evidencia o produto, não o mascara de maneira nenhuma.
Lá está, os produtos são bons, só temos de valorizá-los. Não vou dizer não estragar, era fácil de dizer, mas nem sempre é verdade, mas valorizá-los para que eles possam brilhar.
Canalha é um nome óptimo para um restaurante, muito na linha do que usa agora: dar nomes a espaços como se fossem pessoas.
É esta ideia um bocadinho ibérica, mais espanhola, do restaurante que representa tudo isto: um restaurante Canalha é um restaurante de rua, mais irreverente e irrequieto. Depois tem esse lado, muito nortenho, onde a canalha são os miúdos, que nunca param quietos, de alguém que gosta de brincar e ser um pouco irreverente.
E como é que um chef que gosta de comida e pessoas reais olha para a gentrificação e a turistificação de Lisboa, onde a autenticidade parece desaparecer?
Compreendo que para os restaurantes às vezes é difícil. Começam com uma ideia, mas a verdade é que Lisboa é um destino altamente turístico, a cidade está cada vez mais cosmopolita e não há como fugir disso. E há que ter muito cuidado, não só nos restaurantes, mas em questões como a habitação, e cuidar dos próprios lisboetas. Os lisboetas deviam ser património, e ser altamente preservados, até por questões turísticas, não é? E não correr com eles daqui para fora. Agora há uma dificuldade dos restaurantes, porque quando abrem querem ter portugueses, mas a verdade é que à medida que vão tendo algum sucesso, e é natural, devido aos guias de viagem e a tudo o que se escreve, os estrangeiros, que programam as suas viagens com meses de antecedência, marcam e fazem as suas reservazinhas e o português, sempre à última hora, vem cá bater à porta: "Ainda há lugar para dois?". "Não."
Mas é isso que é um restaurante de bairro: "Hoje não me apetece cozinhar, vamos ali ao restaurante do bairro." Essa espontaneidade perdeu-se.
Exacto. E vai perder-se cada vez mais e não há nada a fazer. Lisboa hoje já não é só os seus 800 mil, ou quantos são, habitantes da cidade, são as pessoas de fora que se organizam para vir. Portanto, há que ter isso em conta. Nós que queremos ocupar o lugar do restaurante de bairro, uma das premissas era: assim que as pessoas cá vierem temos de trabalhar para as agarrar. Por isso, temos esta ambivalência de preços, porque sabemos que vamos ter todo o tipo de gente, e para todos os preços. E esta simplicidade na cozinha é precisamente para que as pessoas perceberem que queremos que voltem. Para já temos só portugueses, e os estrangeiros que vivem cá e fazem parte do nosso dia a dia, temos bastantes. Estamos cá para todos. Agora gostávamos muito que este restaurante mantivesse essa onda, que o pessoal viesse cá ver a bola, quando tivermos televisões, há-de acontecer, temos música portuguesa e um ambiente que remete para um restaurante à antiga portuguesa, com as madeiras, a lioz, toda uma equipa trabalhou nesse sentido.