Conversas

Bioma dos Açores a duas mãos. Como um português e um argentino transformaram as suas conversas num restaurante

O português Rafael Ávila Melo e o argentino Franco Pinilla juntaram-se nos Açores para criar um restaurante que celebrasse a tradição e os produtos da Ilha do Pico de uma forma atual e criativa. O Bioma nasceu das conversas entre o picaroto Rafael e o argentino Franco, oriundo da Patagónia, quando se encontraram em 2022 na ilha açoriana. Abriu em maio e estão disponíveis três menus de degustação.

Foto: DR
Ontem às 07:00 | Augusto Freitas de Sousa
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O percurso dos dois chefs é muito marcado, naturalmente, pela gastronomia, cada um de forma distinta. Para Rafael Ávila Melo, Espanha e o restaurante do Museu Guggenheim foram o mais importante?

Rafael Ávila Melo: Sem dúvida o Nerua. Muitas horas e suor fizeram esses quatro anos resultar numa aprendizagem gigante que atualmente ainda levo muito presente. Também tive oportunidade de viajar muito e visitar todo o tipo de restaurantes, tanto um três estrelas Michelin, como uma tasca ou rulote e assim perceber a importância da cultura gastronómica de cada país/região.

E para si, Franco Pinilla?

Franco Pinilla: O restaurante onde construí a base da minha carreira e que mais me marcou em todos os aspetos foi o Mishiguene, em Buenos Aires. Foi onde trabalhei durante cinco anos, comecei aos 20. Fui pasteleiro nos primeiros três meses, depois passei para a cozinha e aos 22 anos tornei-me chef de cozinha. Foram anos muito intensos e de grande aprendizagem, passei por tudo, o que me formou tanto como profissional quanto como pessoa. Com eles tive a oportunidade de viajar e cozinhar em algumas cozinhas do mundo, o que me deu uma grande capacidade de adaptação. Considero Tomás Kalika, o chef, um mentor, ensinou-me mais do que apenas a cozinhar; mostrou-me a importância de ter um conceito, de o respeitar e de lhe dar valores.

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Que país mais o surpreendeu pela sua gastronomia, Rafael?

RAM: A interação que havia com o mundo gastronómico no País Basco é algo realmente fenomenal porque as pessoas valorizam realmente o momento de comer. Existe a cultura de cozinhar e, ainda mais, de cozinhar para os amigos como os "Txokos". Para além dos inúmeros restaurantes reconhecidos por guias ou revistas gastronómicas, a comida é vivida de outra forma muito mais intrínseca no dia-a-dia de cada um.

Para o Franco foi o México?

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FP: Foi o lugar onde mais gostei de comer. Têm uma cozinha com uma herança cultural muito rica, cheia de sabores e onde respeitam muito as suas tradições. Desfrutei tanto de restaurantes com estrelas Michelin como da rua, que foi o que mais me surpreendeu. Andar a pé, passar por uma feira e comprar comida aos vendedores era, por vezes, melhor do que comer num restaurante. Considero a cozinha mexicana uma das minhas favoritas, e é um país que adoraria explorar mais e continuar a experimentar.

Mas também partilha do gosto de Rafael…

FP: Falando mais de restaurantes profissionais, San Sebastian, no País Basco, surpreendeu-me pela elevada qualidade. Não me lembro de ter comido mal em nenhum lugar enquanto estive lá. Têm uma cultura gastronómica maravilhosa e um nível de qualidade de produto muito elevado.

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Se tivesse de descrever a sua cozinha, o que diria?

FP: A minha cozinha pessoal é bastante simples, gosto de cozinhar com produtos frescos e da época. Gosto de intensidade, não tanto de subtileza. Prefiro elevar os sabores e levar a comida a um ponto de equilíbrio, onde os sabores, sendo intensos separadamente, juntos se tornam mais harmoniosos.

E a sua, Rafael, como a descreve?

RAM: Diria que passa muito mais pelo trabalho de pesquisa do que propriamente por servir lagosta ou cavaco. Passo muitas horas à procura de produto selvagem e formas de usar o que temos porque realmente temos produto com uma qualidade absurda a crescer nas "bermas das estradas". Diria que é genuína e versátil.

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O que o levou a construir um projeto em conjunto? De quem foi a ideia e o que pesou na decisão?

RAM: Estávamos os dois numa fase da vida em que queríamos viver mais. Em 2022 o Franco aproveitou uma viagem que estava a fazer pelo mundo para me visitar e passar uma semana de férias ao Pico. Há quatro anos que mantínhamos contacto e os Açores sempre foram um lugar que lhe despertou muito interesse. No final dessa semana, depois de muitas conversas, apercebemo-nos que havia falta de locais com a delicadeza e a rusticidade que representamos no Bioma. Para além disso seria algo que eu ainda não estava preparado para fazer sozinho e em que o Franco já tinha alguma experiência.

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Foi mais do que uma coincidência, Franco?

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FP: Acho que estávamos a passar por momentos pessoais muito específicos, um pouco estagnados, à procura de mudanças e de uma saída, e acabámos por nos reencontrar no momento certo. Geramos muita empatia devido a experiências semelhantes que vivemos e temos uma visão parecida sobre como gostamos de viver. Vimos a nossa oportunidade de criar algo próprio num lugar onde o potencial gastronómico é enorme, o turismo cresce todos os anos e a falta de oferta é evidente. Além disso, sendo jovens e sem capital suficiente para abrir um restaurante, pensámos que, num sítio pequeno como o Pico, poderíamos fazer a diferença, avançar mais devagar, construir um projeto desde as bases, e ver como evoluía. Se conseguíssemos estabelecer uma boa base para o projeto, talvez pudéssemos atrair algum investidor que nos ajudasse a alcançar os nossos objetivos. Também vimos a oportunidade de encontrar um equilíbrio entre o profissional e o pessoal, de desfrutar e fazer o que gostamos sem nos esgotarmos mentalmente. Antes de nos estabelecermos no Pico, nas chamadas que fazíamos, definimos um limite de um ano para analisar se teríamos a capacidade de levar a nossa ideia avante. Se corresse mal, ficava-nos a experiência, e, no pior dos casos, teríamos vivido num paraíso durante um ano.

Porque escolheram o Pico e não outra ilha ou outro local? Além do Rafael ser picaroto…

RAM: Obviamente que existe um sentimento meu de casa. Mas o Pico tem um potencial astronómico no que toca à gastronomia. Tem um património que só por si se faz representar e, além disso, o crescimento vitivinícola nos últimos anos coloca a ilha num patamar acima de qualquer outra. Também temos um tipo de turista com um poder aquisitivo mais alto no geral, o que faz com que tenhamos mais liberdade.

Mas para Franco Pinilla é viver longe de casa…

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FP: Nos meus planos de vida, sempre esteve a ideia de trabalhar fora da Argentina durante alguns anos, mas, como as coisas estavam a correr bem em Buenos Aires, acabava por não o fazer. Em 2022, comecei a sentir-me diferente, já não apreciava tanto viver numa cidade, não sabia bem para onde me direcionar e sentia que a minha motivação estava a desaparecer, que estava a deixar de desfrutar tanto a nível profissional como pessoal. As oportunidades que tinha pareciam-me ser mais do mesmo e não conseguia projetar o meu futuro. O contexto económico na Argentina estava difícil e eu não via qual era o meu caminho. Foi daí que surgiu a ideia de fazer uma viagem, para aproveitar e tirar umas férias para limpar a cabeça, mas também para ver se havia alguma oportunidade de trabalhar no estrangeiro, na Europa, que me despertasse o interesse. Acho que não tive de aceitar nada, foi algo que aconteceu quase naturalmente. O objetivo nunca foram os Açores, eu mal sabia da sua existência, o que tornou tudo ainda mais natural. Passei por todas as emoções durante o processo de vir para Portugal, mas, na minha cabeça, sentia que era o correto, que havia alguma coisa no Pico que podia ajudar-me com as coisas que faltavam na minha vida. Acho que não tive de aceitar essa ideia, apenas a acompanhei. Era o momento certo para sair de casa.

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O que sente mais falta de casa?

FP: Uma das coisas que mais me passa pela cabeça é a minha família. Apesar de viver longe deles desde os 18 anos – eles na Patagónia e eu em Buenos Aires –, agora é muito diferente, vivo muito mais longe, e isso faz com que sinta mais falta, especialmente das minhas irmãs, com quem passava mais tempo. Outra coisa que sinto falta é da comida argentina. Não é melhor nem pior do que a portuguesa, mas é a comida da minha casa e sempre estive muito ligado à comida. Acho que até a valorizo muito mais agora que estou longe.

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O Rafael refere que pesquisaram intensamente produtos no Pico. O que fizeram?

RAM: Fizemos de tudo. Começámos por criar a nossa horta para termos alguns produtos nossos, fazíamos dias de recolha de fruta selvagem que cresce por todo o lado na ilha como goiabas, araçás, groselhas, figos, amoras, nêsperas entre outros, para elaborar produtos para venda num pequeno mercadinho que há aos sábados de manhã no centro da vila das Lajes do Pico no Cruzeiro. Também começamos a fazer pães no forno da minha avó e, entretanto, alugamos uma antiga padaria para servir de espaço de produção. Sonhámos com uma pizzaria/padaria pensamos em "take away" e sabíamos que a abertura de um restaurante, sem nenhum investidor, seria um processo que nós esperávamos que demorasse pelo menos uns três anos, mas que acabou por ser em menos. Entretanto fomos convidados a ser chefs num restaurante na ilha, mas sabíamos que seria sempre um processo transitório pois tínhamos como meta o nosso espaço.

Foi uma profusão de ideias, Franco?

FP: A ideia inicial foi aprender e conhecer a ilha. Na primeira semana já estávamos a montar uma horta e começámos a desenvolver várias ideias e a pensar em como as íamos concretizar. Tínhamos claro qual era o nosso objetivo a nível de conceito de produto, mas o como, onde e quando, eram completamente incertos. A motivação estava lá, estávamos entusiasmados com a ideia de construir uma coisa nossa e não parámos desde que chegámos ao Pico. A partir desse momento, entrou-nos na cabeça que podíamos realmente fazê-lo e percebemos que precisávamos um do outro para o levar a cabo.

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O restaurante é vosso ou há investidores, Rafael?

RAM: Somos apenas eu e o Franco, sempre tivemos em mente poder arranjar alguém que ajudasse a construir e a gerir toda esta parte que era nova para nós, a parte de ter uma empresa/restaurante que são duas coisas diferentes, mas não encontramos ninguém. Entretanto pedimos um empréstimo que também não resultou e, entretanto, já estávamos a começar a temporada no Pico, portanto ou era já, ou não seria. Nós já tínhamos a plena certeza de que isto iria acontecer de que maneira fosse. Porque às vezes as coisas não têm de começar perfeitas, mas têm de começar, como diz o Franco. Com um reduzido empréstimo face ao que planeámos, abrimos as portas do Bioma a 28 de maio, incluindo a ajuda de muitas pessoas no processo.

Quantas pessoas trabalham na casa?

Atualmente somos quatro a trabalhar, nem todas a tempo inteiro, mas acabámos de começar a época baixa, imaginamos que durante a temporada alta podemos chegar a ter entre seis a dez pessoas na equipa. Também gostávamos de poder contar com uma equipa fixa ao longo do ano, para que nos pudessem dar segurança para voos mais altos, mas tem sido complicado encontrar pessoas com as competências que necessitamos, e que queiram viver numa ilha no meio do oceano.

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Sei que estiveram os dois no Festival de Gastronomia de Santarém. Têm memórias muito especiais do festival, não é?

FP: Nessa altura, não tínhamos uma cozinha própria, estávamos a trabalhar como chefs executivos de outro restaurante, como parte do nosso estudo de mercado e também para começar a criar um nome na ilha. Através de algumas pessoas que o Rafa conhecia, recebemos um convite do chef Rodrigo Castelo para o festival. Eles queriam ter algum representante dos Açores nas barracas de comida, onde havia muitos chefs de renome. Primeiro, pensámos bastante sobre o assunto. Como iríamos cozinhar lá sem ter a nossa própria cozinha? O que iríamos vender? Como poderíamos estar à altura de restaurantes já estabelecidos e conceptualizados? Além disso, havia a parte económica: não tínhamos muito dinheiro para investir, e o que o festival oferecia não era suficiente para cobrir tudo o que tínhamos de fazer, já que não tínhamos uma estrutura.

Mas acabaram por ir…

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FP: Aceitámos o desafio e começámos a planear tudo, desde o que íamos cozinhar até como iríamos cobrar pela comida sem ter uma empresa aberta, enfrentando mil problemas que tínhamos de resolver. Decidimos criar um menu utilizando os produtos selvagens que a ilha tinha para nos oferecer, para conseguirmos reduzir custos e representar melhor o que queríamos ser no futuro: uma cozinha de produto açoriano. Nas semanas que antecederam o evento, percorremos a ilha, juntámos produtos, cozinhámos em cozinhas emprestadas e organizámo-nos da melhor forma possível. Pedimos ajuda a um amigo, o Fábio Rocha, que nos ajudou e as adegas concordaram em dar-nos os vinhos em consignação, já que não tínhamos dinheiro para lhes pagar. Era preciso poupar ao máximo para a viagem.

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As dificuldades não acabaram por aí…

FP: Foi uma das semanas com o pior clima. Não conseguimos ir buscar produtos porque o tempo não deixava, não tínhamos uma cozinha disponível sempre e também não havia muito margem para erros. Tínhamos de cozinhar em Santarém na sexta e no sábado e, na quarta-feira, tínhamos voo, mas rebentou um pneu no caminho para o aeroporto. Pedimos um táxi e conseguimos chegar. Não serviu de muito, porque cancelaram o voo devido ao mau tempo. Chegámos a Santarém na madrugada de sexta-feira, por volta das duas da manhã. Ainda havia pessoas na feira a ultimar detalhes e deixaram-nos entrar para deixar as nossas coisas e ver a cozinha que teríamos à disposição. Dormimos 4 horas e depois fomos cozinhar e preparar tudo, tentando fazer o melhor possível.

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Sempre conseguiram…

FP: Não ganhámos dinheiro, mas vendemos o suficiente para amortizar tudo o que tínhamos investido, divertimo-nos, conhecemos pessoas, comemos bastante e, entre erros e acertos, conseguimos fazer os dois dias de evento. Com o Rafa, voltamos desse viagem bastante cansados e desgastados. Quase não falámos no regresso aos Açores. Durante toda essa aventura, vivemos muitas emoções e, só ao voltar, percebemos tudo o que tínhamos feito para estar lá. Foi o nosso primeiro desafio sério, o primeiro que nos pôs à prova para saber se o caminho era o correto, se sabíamos trabalhar juntos, como lidar com situações de stress e como iríamos resolver problemas. Nessa viagem, entendemos que podíamos alcançar os nossos objetivos, que não ia ser fácil, que aquilo era apenas uma prova do caminho que queríamos percorrer. Hoje, Santarém, apesar de todas as dificuldades que tivemos, é uma boa memória.

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